Confesso que escrever este artigo, por tudo o que sei da Catarina, me intimida um bocadinho. Seria impossível falar do que aprendi com ela sem falar primeiro de mim. Nasci a 5 de Agosto de 1987 com duas voltas do cordão umbilical muito apertadas ao redor do pescoço e da minha mão direita, causando-me um hemangioma (tumor benigno nos vasos sanguíneos). Sempre tive mãos pouco responsivas, era a pior em qualquer desporto de grupo e apesar de não tirar 2 a Educação Física todos os boletins escolares mencionavam “dificuldades motoras”. Por esta altura já ouvia vários colegas a chamarem-me de deficiente e era sempre a última a ser escolhida para jogar.
Mas eu tinha um trunfo que eram as restantes disciplinas (à exceção da Matemática), o que mantinha a minha autoestima mais ou menos equilibrada. Com a morte da minha avó paterna dá-se um grande vazio que as boas notas já não eram capazes de preencher completamente.
Transpondo isto para a história da Catarina, ela era completamente saudável até aos 27 anos, sempre trabalhou e estudou sem qualquer problema até vir a mielite transversa (inflamação da medula espinal) que a impede de andar. Mas essa doença não a impede de imaginar um mundo melhor, de se deslocar na sua cadeira de rodas, tendo sempre em conta que desde que lhe removam os obstáculos e construam rampas, não há limite para a sua liberdade.
Confesso que já fui bastante capacitista ao ver desenrolar a história da Catarina. Pensei que o final feliz era ela voltar a andar. Em vez disso, a Catarina construiu uma comunidade pulsante à sua volta e sabe que não está sozinha.
Talvez tudo passe por uma questão de gratidão. Voltando ao meu nascimento, graças a uma parteira experiente, ainda tive 8 na escala de Apgar o que não sendo perfeito, diz-nos que não houve profunda falta de oxigénio no parto e as funções do bebé estão basicamente dentro do normal, apesar do pescoço arroxeado. Para a Catarina a gratidão passou por finalmente deixar o hospital depois de largos meses com cateteres e tentar retomar uma vida normal, com uma aceitação verdadeira de tudo o que lhe tinha acontecido. Como ela disse numa Ted Talk, nunca pensou “Porquê eu?” mas sim “Porque não a mim?”
Aos 21 anos fui diagnosticada com doença bipolar (uma instabilidade nos humores que pode variar entre a mania, a depressão e estados mistos). Decidi assumir abertamente o meu diagnóstico na minha revista Humanamente, que tenho desde 2016. Ao sermos um rosto para uma doença mental, por nossa própria escolha, não tenho a certeza se as pessoas entendem que é para informar, trazer representatividade e eventualmente ajudar. Há quem pense que é para fazer de coitadinho ou pedir favores, o que não é de todo a minha linha de conduta desde sempre. Há quem nos diga que nunca vamos conseguir ser alguém na vida, o que vendo o caso do meu pai que sempre teve uma profissão, sei que é a mais pura das mentiras.
Misturando o bullying da deficiente que ainda ecoava nos meus ouvidos com a realidade da doença mental senti uma dor muito grande e medo da minha própria cabeça. Fiz terapia cognitivo-comportamental mas só viria a desenvolver mais auto estima passado algum tempo.
Sei que a Catarina não gosta de ser chamada de guerreira nem de inspiração mas vê-la a comunicar tão abertamente, não só sobre a sua deficiência como tudo o que lhe passa pela cabeça, é realmente algo que nutre os seguidores. Vemos o seu sentido de humor, mesmo o mais ácido, os truques para manter o seu cabelo encaracolado sempre no ponto e claro, a acessibilidade ou falta dela em distintas zonas do país.
Uma palavra que também posso aplicar à Catarina é ser corajosa: estudava Medicina quando decidiu trocar por Nutrição, uma área que a apaixona. Não sei os detalhes desta decisão, mas é um facto que uma alimentação equilibrada, variada e saudável previne várias doenças e nem sempre a Medicina aposta na prevenção em saúde.
Que mais falta dizer? Espero que a Catarina esteja feliz. Recordo uma story em que ela cheia de frustração mencionou que um funcionário da CP acabou por lhe causar transtornos na transferência. Nem sempre o excesso de zelo é bom. Uma vez fui a um centro de saúde depois de ter desmaiado num concerto, o que atribui a tensão baixa e má alimentação e receitaram-me um ansiolítico por a doença bipolar constar da minha ficha. Apesar de dizer que tinha tido anemia três vezes isso não foi suficiente para incluírem a hemoglobina nas análises.
A doença bipolar parece desconhecida num todo. Quando ia fazer uma endoscopia há uns anos vejo as enfermeiras aos risinhos a dizerem que também achavam que eram bipolares. Não gosto desse tipo de comportamento quando estou prestes a ter uma intervenção clínica ou usarem determinada linguagem ao desbarato como “visão autista” ou “aleijadinha” como fizeram com a Catarina, o que é tão preconceituoso, retrógrado e detestável.
Por vezes é como se abrissem a caixa de Pandora e estejamos a lutar com unhas e dentes para não nos levarem a esperança. Gostava de dizer que as palavras magoam e as ações também. Que não julguem tanto e deixem a Catarina manter a sua extraordinária alegria de viver, talvez seja nisso que reside a sua verdadeira raridade.
Paula Gouveia











