Entrevista a Nádia Rodrigues “Havia incertezas e desafios, mas também havia espaço para a resiliência”

 

Mãe de uma criança com Perturbação do Espectro Autista (PEA), Nádia enfrenta vários desafios na vida como a esclerose múltipla (EM), uma depressão crónica e fibromialgia.

Fomos falar com ela para saber como lida o melhor possível com estas condições e como está a promover a inclusão e a empatia com o seu livro “Diego e o sussurro da floresta”.

 

“Como poderia continuar a ser a mãe que ele precisava se o meu corpo começasse a falhar?”

1. A Nádia viu a sua vida mudar depois de uma nevrite ótica (inflamação do nervo do olho) e sintomas isolados na coluna, o que mais tarde conduziu a um diagnóstico de Esclerose Múltipla (EM). Como foi aceitar este diagnóstico numa idade tão jovem?

Ser diagnosticada com Esclerose Múltipla aos 32 anos foi como ser lançada num turbilhão de emoções e incertezas. Tudo começou com uma nevrite ótica que me deixou completamente cega do olho direito e parcialmente do esquerdo. De um momento para o outro, o meu mundo escureceu – literal e metaforicamente. O medo tomou conta de mim. Medo de nunca recuperar a visão, medo do desconhecido, medo do que ainda estaria por vir.

Tinha um filho de 12 anos que dependia inteiramente de mim. Como poderia continuar a ser a mãe que ele precisava se o meu corpo começasse a falhar? Como poderia estar presente para ele, acompanhar os seus passos, ajudá-lo a crescer, se eu própria não sabia como o meu futuro iria desenrolar-se? Além disso, estava no primeiro ano da licenciatura, finalmente a concretizar o sonho de estudar a área que sempre quis. Pensei que teria que desistir de tudo, que o meu esforço até ali teria sido em vão.

Mas, apesar do medo e da angústia, algo em mim recusou-se a aceitar que a minha vida terminava ali, naquele lugar de medo e de insegurança. Aprendi, aos poucos, a conhecer a doença e a compreender o que significava viver com ela. Tive que voltar a aprender a conhecer o meu corpo, os sinais que ele me dava e até onde é que eu poderia ir, sem que depois existissem consequências na saúde. Sim, havia incertezas e desafios, mas também havia espaço para a resiliência, para a adaptação e para continuar a lutar pelos meus sonhos e pelo meu filho. O caminho não foi fácil, mas encontrei formas de seguir em frente, um dia de cada vez. O apoio de alguns familiares e amigos fizeram toda a diferença.

 

“Não consigo chegar sempre onde gostaria, o que me leva a um sentimento de frustração constante”.

 

2. Dentro da multiplicidade de sintomas da EM, quais são os que afetam e condicionam mais a sua vida?

A Esclerose Múltipla acrescentou na minha vida uma série de desafios que, diariamente, me obrigam a reajustar as minhas rotinas e expectativas. Entre todos os sintomas, há 4 que impactam significativamente na minha rotina e no meu desempenho nas diversas áreas da vida: a fadiga, a diplopia, a depressão e a ansiedade.

A fadiga é, sem dúvida, um dos sintomas mais limitantes. Não é um simples cansaço que se resolve com uma boa noite de sono. É um esgotamento profundo, que me consome mesmo nos dias mais tranquilos. Como mãe, há momentos em que quero estar presente e ativa, mas o corpo simplesmente não responde. Pequenas tarefas, como preparar o jantar ou ajudar o meu filho com algo, tornam-se desafiadoras. No trabalho, a concentração esgota-se rapidamente, e o esforço para manter a produtividade é imenso. Como mulher independente, é frustrante sentir que há dias em que simplesmente não consigo fazer tudo o que gostaria. E é um processo tão complicado para mim, que até hoje não consigo interiorizar a ideia de que não consigo fazer tudo o que quero, não consigo chegar sempre onde gostaria, o que me leva a um sentimento de frustração constante.

A diplopia (visão dupla) afeta diretamente a minha autonomia. Não é um sintoma que sinta constantemente, mas quando estou em crise, é irritante, porque coisas tão simples como ler, conduzir ou até mesmo deslocar-me sozinha tornam-se complicadas. Há momentos em que sinto que estou a viver num mundo desfocado, o que me obriga a fazer pausas constantes e a depender mais dos outros. Isto afeta a minha confiança, pois sempre fui alguém que valorizou a independência.

A depressão tornou-se a minha sombra, está sempre comigo. No início, tentei ignorá-la, convencer-me de que era apenas uma fase, mas percebi que não era nada que se resolvesse apenas com força de vontade. Há dias em que o peso da doença parece insuportável, em que a motivação desaparece e o medo do futuro se torna esmagador. Como mãe, isso preocupa-me, porque quero ser um exemplo de força para os meus filhos, e nem sempre consigo. No trabalho, é um desafio manter o entusiasmo e a criatividade quando, por dentro, luto para manter o equilíbrio emocional.

A ansiedade anda de mãos dadas com a incerteza que a EM traz. Nunca sei como será o dia de amanhã: se conseguirei cumprir os meus compromissos, se o meu corpo me vai trair, se estarei à altura das exigências da vida. Essa ansiedade reflete-se em noites mal dormidas, pensamentos acelerados e numa constante necessidade de estar em alerta. E isso desgasta, consome energia e, quase sempre, impede-me de simplesmente viver o momento presente.

No meio de tudo isto, aprendi a adaptar-me, a ouvir o meu corpo e a respeitar os meus limites. Mas não posso negar que cada um destes sintomas deixa marcas, exigindo de mim uma força que nem sempre sei de onde vem. Ainda assim, sigo em frente, porque sei que a minha vida vale mais do que as limitações que a EM me impõe.

 

3. A esclerose (que significa endurecimento) resulta da destruição dos tecidos que envolvem os nervos (bainha de mielina) no cérebro e na medula espinhal. Que medidas toma a Nádia ativamente para evitar a progressão desta condição neurológica?

A Esclerose Múltipla é uma doença autoimune e degenerativa, o que significa que não há muito que eu possa fazer para impedir a sua progressão além de seguir rigorosamente o tratamento prescrito. No meu caso, tomo acetato de glatiramero (Copaxone) – 3 injeções por semana em dias alternados. Trata-se de um imunomodulador que ajuda a modular a resposta do meu sistema imunitário e a reduzir a frequência dos surtos. Sei que não é uma cura, mas é o que tenho ao meu alcance para tentar abrandar o impacto da doença.

Além da medicação, sou consciente de que existem fatores que podem agravar a minha condição, como o stress e a ansiedade. O problema é que lidar com isso não é simples, especialmente para alguém que, como eu, tem transtorno de ansiedade generalizada. Sei que devia evitar o stress, manter a calma, respirar fundo e não deixar que a ansiedade me domine… mas a realidade é outra. A minha mente está sempre em alerta, e mesmo quando tento relaxar, a preocupação com o futuro, com o meu corpo e com tudo o que esta doença implica não desaparece.

Já tentei encontrar estratégias para minimizar os gatilhos, mas é um processo constante. Tento descansar quando posso, organizar a minha rotina de forma a não sobrecarregar o meu corpo, e, acima de tudo, aceito que há dias melhores e dias piores. Sei que não tenho controlo sobre a EM, mas tenho controlo sobre a forma como escolho enfrentá-la.

 

“A fibromialgia pode não aparecer em exames, mas é real, e merece ser levada a sério.

 

4. Também tem fibromialgia, uma doença que provoca algumas vezes dores intensas que se podem agravar com a fadiga da EM, mas que não aparece nos raios x nem ressonâncias magnéticas. Sente que esta condição ainda é muito incompreendida e pouco debatida?

A fibromialgia foi uma batalha longa antes mesmo de ter um nome. Durante anos, vivi com dores intensas, exaustão e um mal-estar constante sem qualquer explicação concreta. O diagnóstico demorou a chegar, e esse tempo de incerteza foi profundamente frustrante. Infelizmente, a falta de conhecimento e o estigma em torno da doença ainda são uma realidade, mesmo entre os próprios profissionais de saúde. Muitas vezes, os sintomas são desvalorizados, vistos como exagero ou até como algo “psicológico”, o que só aumenta a sensação de desamparo de quem vive com esta condição.

Além disso, ter fibromialgia e Esclerose Múltipla em simultâneo significa enfrentar desafios em dobro. A fadiga extrema da EM agrava as dores musculares e articulares da fibromialgia, as dores agravam a fadiga, e estou perante um ciclo vicioso que torna alguns dias particularmente difíceis de gerir. No entanto, em vez de me resignar à falta de apoio e compreensão, escolhi agir e sensibilizar para esta doença.

Através do meu trabalho voluntário como Coordenadora do Grupo de Apoio da Margem Sul da Associação Portuguesa de Fibromialgia, dedico-me a informar e a dar voz a quem vive com esta condição. Organizamos palestras e encontros informativos, abordamos temas fundamentais como saúde mental, exercício físico, terapias alternativas e estratégias para melhorar a qualidade de vida. O objetivo é claro: combater o desconhecimento e dar às pessoas as ferramentas necessárias para lidarem com a doença de forma mais informada e empoderada.

Mas a sensibilização não pode ficar apenas entre os doentes. Portugal ainda não está preparado nem atualizado para gerir utentes com fibromialgia. Faltam políticas públicas adequadas, médicos especializados e, acima de tudo, reconhecimento oficial da doença como uma condição incapacitante. Foi por isso que apoiei a petição “Políticas de Saúde e Inclusão Social para Pessoas com Fibromialgia”, que defende melhores condições de tratamento, acompanhamento e apoio social para os doentes.

Lutar pela visibilidade da fibromialgia é uma missão pessoal. Quero que mais pessoas sejam diagnosticadas atempadamente, que tenham acesso a cuidados de saúde adequados e que nunca mais sintam que a sua dor é invisível. Porque a fibromialgia pode não aparecer em exames, mas é real, e merece ser levada a sério.

 

“A saúde mental, infelizmente, continua a ser negligenciada em Portugal”

 

5. Com o passar do tempo, a Nádia desenvolveu uma depressão crónica. Como tem sido esse processo da sua jornada? Tem tido acompanhamento psiquiátrico e/ou psicológico?

Com o passar dos anos, a depressão tornou-se uma presença constante na minha vida, embora muitas vezes invisível para quem me rodeia. Em 2018, com o primeiro surto de Esclerose Múltipla, essa sombra tornou-se ainda mais pesada. É difícil explicar a profundidade dessa tristeza, porque não se vê, porque todos os dias faço um esforço enorme para parecer bem. Mas esse esforço tem um custo elevado, e de tempos a tempos, acabo por mergulhar em crises mais graves.

Durante a minha segunda gravidez, tive de suspender a medicação – antidepressivos, calmantes, tudo o que me ajudava a manter algum equilíbrio. Foram meses extremamente difíceis, seguidos de um pós-parto ainda mais desafiante. A saúde mental, infelizmente, continua a ser negligenciada em Portugal. O Sistema Nacional de Saúde não dá resposta adequada, e o acompanhamento privado está fora do alcance de muitas pessoas, como esteve para mim durante muito tempo.

Há cerca de 2 anos, descobri que a Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM) oferecia apoio psicológico gratuito aos seus sócios. Foi então que pedi ajuda, e desde aí sou acompanhada por uma profissional. Hoje em dia já não prescindo desta terapia, porque sei o impacto que a depressão tem na minha vida, mesmo que os outros não o vejam.

Por vezes, sinto-me profundamente desiludida comigo própria. Olho para tudo o que já conquistei e sinto que deveria ser plenamente feliz. Sei que tenho tudo para o ser, mas a depressão rouba-me essa sensação. Há uma barreira invisível que me impede de sentir essa felicidade na sua totalidade. Ainda estou nesse processo de superação – e provavelmente estarei para sempre –, mas sigo em frente, um dia de cada vez.

 

6. Sabemos da relação muito estreita entre corpo e mente, de que é preciso cuidar e integrar. Como se sente quando se ouve por aí para se ser forte no caso da depressão mas não se diz o mesmo a quem tenha uma perna partida?

Há ainda um longo caminho a percorrer no que diz respeito à saúde mental. A sua desvalorização é, infelizmente, uma questão cultural, profundamente enraizada na nossa sociedade. É muito difícil para o ser humano comum aceitar, compreender e ter empatia por algo que não consegue ver. Enquanto uma perna partida é evidente, com gesso e muletas a atestarem a lesão, a depressão continua a ser invisível aos olhos de muitos – e, por isso, tantas vezes desvalorizada.

Acredito que deveria existir muito mais sensibilização para estas questões, muito mais difusão de informação, começando logo nas escolas. Se educarmos as nossas crianças desde tenra idade para a diversidade das experiências humanas, para o facto de não sermos todos iguais e de que algumas doenças não se manifestam fisicamente, estaremos a construir uma sociedade mais empática e respeitadora. Mas continuamos a preocupar-nos com rankings de notas a Matemática, em vez de apostarmos na inteligência emocional, como ferramenta para a vida.

Ainda vou ouvindo, aqui e ali, que a depressão é “a doença da moda”. Mas não, não é. É a doença de muitos que tiveram de ser – e de se mostrar – fortes por tempo demais, até pagarem esse preço com a própria saúde mental. Precisamos urgentemente de mudar a forma como falamos (ou não falamos) sobre isto.

 

7. A depressão carateriza-se por uma sensação de nada valer a pena, de sobrecarga e/ou perda de prazer em coisas simples da vida que anteriormente se gostava de fazer. Quais são os principais sintomas que levaram ao seu diagnóstico?

Eu tenho plena consciência de que tenho tudo para ser feliz, mas simplesmente não consigo. Por mais que me esforce, por mais que tente encontrar essa sensação plena de alegria, ela escapa-me. A depressão é exatamente isso: uma sombra persistente, desagradável, que nunca me larga.

Os primeiros sinais que me levaram a procurar ajuda foram a tristeza constante, aquela sensação de peso que nunca desaparece, a falta de vontade de socializar, a perda de apetite e, talvez o mais difícil de aceitar, a perda de interesse nas coisas que antes me faziam bem. É como se, de repente, tudo se tornasse incrivelmente mais difícil e pesado de carregar.

O que mais me custa é ver como isso se reflete na minha relação com o meu filho mais novo. Ele precisa tanto de mim, do meu amor, da minha atenção, da minha presença plena. E eu estou sempre presente. Só não consigo, muitas vezes, ter a disposição positiva que gostaria de ter, aquela que ele merece, aquela que eu sei que deveria conseguir oferecer. E isso dói. Dói porque sei o que deveria sentir, sei o que deveria conseguir dar, mas a depressão rouba-me essa capacidade, tornando tudo mais difícil.

8. A Nádia é uma mãe atípica, com um dos seus filhos a ter PEA (Perturbação do Espetro do Autismo). Apesar de ser uma condição neurológica e de origem biológica, que começa ainda na fase de embrião, alguma vez se sentiu culpada ou sem saber o que fazer?

Culpada, nunca! Sem saber o que fazer, sempre!

Acredito que todos os pais – ou, pelo menos, assim deveria ser – querem o melhor para os seus filhos. Eu não sou diferente. Quero o melhor para ele, mas, devido às suas características e à sua condição, nem sempre sei se o que estou a fazer é, de facto, o melhor.

O autismo não é uma doença, não tem cura. É um transtorno do neurodesenvolvimento que o acompanhará para o resto da vida. Mas existem terapias que ajudam a superar algumas dificuldades, seja na fala, seja na socialização. E é precisamente por isso que me vejo tantas vezes perdida, sem respostas certas.

A minha cabeça é um turbilhão constante de dúvidas:

Será que está a fazer terapias a mais? Ou deveria fazer mais do que as que já faz?

Será que se sente sobrecarregado com tanta exigência? Ou será que os terapeutas deveriam ser mais exigentes?

Como é que vou lidar com esta crise?

Porque é que ele não dorme? Porque é que não come?

Deverei insistir para que coma? Ou devo simplesmente aceitar que só consegue comer determinadas coisas sem o forçar a experimentar outras?

E é assim, todos os dias. Vivo entre dúvidas e incertezas, entre medos e receios. Pergunto-me constantemente se tudo o que faço com ele e por ele será, de facto, o melhor para o seu desenvolvimento. Mas, no meio de todas essas incertezas, há uma certeza absoluta: vou estar sempre ao seu lado, a aprender com ele e por ele, a fazer o melhor que sei e posso, mesmo quando sinto que não sei nada.

9. O seu filho faz neuropediatria, terapia de fala, terapia de Snoezelen e terapia assistida por cavalos. Os benefícios da terapia com estes animais são bem conhecidos. Podia-nos falar um pouco da terapia de Snoezelen para as pessoas que não saibam em consiste.

A terapia Snoezelen é algo que descobri no meu percurso enquanto mãe de uma criança autista, e que faz todo o sentido para todas as crianças – autistas ou não. Trata-se de um ambiente multissensorial criado para estimular ou acalmar os sentidos, dependendo das necessidades de cada um. Luzes suaves, sons tranquilos, texturas diferentes e até aromas específicos são usados para proporcionar uma experiência segura e controlada.

No caso do meu filho, e de tantas outras crianças com PEA, esta terapia pode ser extremamente benéfica. Muitas vezes, ele sente o mundo de forma mais intensa, ou pelo contrário, precisa de estímulos extra para processar melhor o que o rodeia. E é aqui que o Snoezelen pode ajudar.

Para além de acalmar e reduzir a ansiedade, este ambiente também pode ajudá-lo a comunicar melhor, a expressar-se, a interagir de forma mais espontânea. Também pode contribuir para o desenvolvimento da atenção, da coordenação motora e até da própria aprendizagem. Mas, acima de tudo, é um espaço onde ele pode sentir-se seguro, sem pressão, sem exigências, apenas a explorar os sentidos ao seu ritmo.

Sei que o autismo não tem cura, e que o caminho é feito de ajustes constantes, de tentativas e erros. Mas sei também que terapias como esta podem fazer a diferença, ajudando a tornar o mundo um lugar um pouco mais confortável para ele, e pensando nisto, transformamos o quarto dele e tornamo-lo num espaço muito equiparado às salas Snoezelen! Para que, quando percebo que ele precisa de se acalmar, de abrandar o ritmo, ter o seu cantinho que o ajuda nesse desafio!

“A inclusão real passa pelo conhecimento e pela compreensão”

 

10. Nas escolas nem sempre se promove a inclusão de crianças neurodivergentes, com metas curriculares cada vez maiores, mais rígidas e padronizadas. O que gostaria de ver mudado no ensino oficial para que as crianças autistas sentissem maior aceitação e bem-estar nestes espaços?

Há tantas coisas que poderiam ser feitas para que as crianças autistas se sentissem melhor e mais incluídas nas escolas.

Acredito que uma das mudanças mais urgentes seria garantir que todos os profissionais de educação – tanto docentes como não docentes – recebessem formação obrigatória e atualizações regulares sobre neurodivergência. É essencial que adquiram competências, ferramentas e estratégias para lidar com crianças autistas, para promoverem uma relação mais empática e inclusiva. Saber como agir perante uma crise – seja um meltdown ou um shutdown –, entender as necessidades sensoriais, ou até aprender formas alternativas de comunicação no caso de autistas não verbais, deveria ser uma prioridade.

Outra mudança essencial seria a implementação de ações de sensibilização nas escolas, adaptadas a cada faixa etária. Não apenas sobre o autismo, mas também sobre outros transtornos e condições de saúde. A inclusão real passa pelo conhecimento e pela compreensão, e ensinar desde cedo que nem todos percecionam o mundo da mesma forma faria toda a diferença.

Além disso, muitas crianças autistas precisam, ao longo do dia, de um espaço onde possam isolar-se dos estímulos exteriores, mas as escolas não estão minimamente preparadas para isso. Até os aeroportos e centros comerciais já começam a criar salas Snoezelen e horários sem ruído, como medidas de inclusão. E, no entanto, as escolas continuam a desvalorizar completamente esta necessidade.

A inclusão não é só uma palavra bonita para constar nos projetos educativos. A inclusão faz-se com mudanças reais, com vontade de adaptar o ensino às necessidades das crianças – e não o contrário.

Recentemente escrevi um livro, uma história infantil – “Diego e o sussurro da floresta” – inspirada nas vivências do meu filho que ando, com muito gosto, a levar às escolas, como forma de sensibilização para este tema. É uma história sobre empatia, que nos mostra que se nos tentarmos colocar no lugar do outro, se torna mais fácil compreender o seu ‘mundo’. Enquanto mãe de uma criança autista, senti a necessidade de criar uma história que ajudasse a promover a empatia, a inclusão e a compreensão das crianças neurodivergentes. Espero desta forma contribuir para uma melhor compreensão da sociedade sobre as nossas crianças autistas.

 

Paula Cristina Gouveia

 

Entrevista a Bruna Lopes “A inclusão de verdade acontece quando ajustamos o contexto às crianças – e não o contrário.”

 

Bruna Lopes, mãe de uma criança com Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção e Perturbação de Espetro do Autismo) batalha todos os dias por uma maior inclusão, empatia e um mundo mais junto. Fomos conhecer o que move a autora e defensora incansável dos direitos das pessoas neurodivergentes.

 

Bruna, é mãe, trabalha e é autora de dois livros que podem ser lidos por miúdos e graúdos “Silvestre e a PHDA” e “Kevin e o autismo”, que visam sensibilizar a sociedade como um todo. Como foi para si aceitar o diagnóstico de PHDA (Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção) e PEA (Perturbação de Espetro Autista) do seu filho e que medidas toma para proteger a sua sanidade mental?


Aceitar o diagnóstico do meu filho foi um processo difícil, mas trouxe clareza e compreensão sobre a sua forma de funcionamento e as suas necessidades. Foi um caminho de aprendizado, que permitiu-me olhar para ele com ainda mais empatia e apoiar o seu desenvolvimento da melhor forma possível. Para manter o equilíbrio e a sanidade mental, acredito que é importante manter uma rotina estruturada, procurar momentos de descanso e, sempre que necessário, contar com apoio adequado, seja através da informação, da comunidade ou de profissionais capacitados. Afinal, para cuidar bem dele, também preciso cuidar de mim.

 

“É de grande importância que o Estado invista nas escolas portuguesas e implemente soluções que tornem o ensino verdadeiramente inclusivo”

 

2) Descreve a PHDA como ter muita energia, mas que não impede que as crianças sejam especiais e cheias de ideias criativas. Por outro lado, as crianças PHDA podem ser impulsivas e sentir confusão. Quando se tem de passar muitas horas na escola desde tenra idade, será que a diversidade e criatividade destas crianças está a ser compreendida e canalizada da maneira certa?
Ainda há um longo caminho a percorrer. Muitas crianças são rotuladas como desatentas ou problemáticas, quando, na realidade, precisam de estratégias diferentes para desenvolver. Em Portugal, a adaptação das escolas ainda é insuficiente. A formação contínua dos professores é escassa e, quando existe, é muitas vezes financiada pelos próprios docentes.
As salas de aula não estão preparadas para responder às necessidades sensoriais destas crianças. No entanto, existem materiais inovadores já utilizados noutros países, como a KINNEBAR 100 Foot Swing, que ajudam na auto regulação e foco. É de grande importância que o Estado invista nas escolas portuguesas e implemente soluções que tornem o ensino verdadeiramente inclusivo para crianças com PHDA e outras condições. Até lá, a inclusão continuará a existir apenas no papel.

 

“Em casa, reforcei pausas ativas, como o uso de um trampolim, e criei um espaço tranquilo”

 

3) Há quem descreva o PHDA como ter uma caneta de mil cores que só funciona com uma de cada vez e querer usar todas ao mesmo tempo. Que medidas podem ajudar estas crianças a acalmar-se, a focarem-se quando é preciso e a resistirem melhor às frustrações naturais da vida?
Estratégias como pausas frequentes, ensino multissensorial, reforço positivo e atividades que incentivem a autonomia são de grande importância para melhorar a concentração e a gestão das emoções. Por exemplo, o uso de um temporizador visual pode ajudar na organização do tempo. Em casa, reforcei pausas ativas, como o uso de um trampolim, e criei um espaço tranquilo com vários elementos sensoriais que ajudam a acalmar e a regular as emoções.
Essas iniciativas complementam o trabalho dos profissionais de saúde, pois o acompanhamento médico e as intervenções terapêuticas devem ser aplicados tanto no ambiente familiar quanto no escolar. A escola, onde as crianças passam a maior parte do tempo e aprendem a conviver em sociedade, muitas vezes carece desses recursos.
Em resumo, a união entre família, escola e profissionais potencializa os benefícios da intervenção, criando um ambiente mais estruturado, acolhedor e propício ao desenvolvimento equilibrado da criança.

4) Quais as principais diferenças que identifica entre um cérebro neurotípico e um neurodivergente?
Imagine que o cérebro humano é como um computador, cujo “software” define como ele processa informações; enquanto o cérebro neurotípico segue um padrão mais comum, o cérebro neurodivergente traz um “software” diferente, que pode incluir desafios na regulação emocional, hiperfoco, maior sensibilidade sensorial e abordagens criativas de pensamento. Aceitar estas diferenças é um passo importante para criarmos ambientes mais seguros e compreensivos, onde todas as formas de comunicação sejam reconhecidas e valorizadas.

5) Resume o PEA como uma forma diferente de ser entendido e de comunicar. Isto incluiu repetir palavras ou frases que se ouviu antes (ecolalia) e movimentos repetitivos (estereotipias). Que outros atos das crianças autistas fogem ao que é a padrão, mas podem ser uma maneira de tentar interagir?
Muitas vezes, aquilo que à primeira vista parece apenas um comportamento dito como “estranho” ou “inadequado” é, na verdade, uma tentativa de interação ou de autorregulação. Alinhar objetos, repetir perguntas, fixar-se durante muito tempo num tema específico… tudo isto pode ser a forma que a criança encontra para conectar-se com o mundo e com as pessoas à sua volta, ainda que não seja da maneira que estamos habituados.
Algumas crianças, por exemplo, respondem com sons em vez de palavras quando lhes falamos. Podem emitir sons que fazem parte de sua comunicação, como vocalizações, ruídos ou murmúrios. E isso não significa que não estão a ouvir ou a querer participar da interação – pelo contrário, pode ser a maneira que naquele momento encontram para mostrar presença, interesse ou até para processar o que foi dito. Durante uma crise, esses sons podem ser uma tentativa de lidar com a sobrecarga sensorial e emocional, sendo uma forma de autossuficiência e autorregulação, e não uma ausência de comunicação. Também movimentos como o flapping (agitar as mãos) ajudam a libertar a tensão e a organizar emoções frente a estímulos intensos. Quando olhamos para estes gestos com respeito e curiosidade, percebemos que eles têm uma função importante no equilíbrio da criança.
A questão que devemos colocar não é “como fazemos para parar isto?”, mas sim “este comportamento está a ajudá-la?”. E se está, e se não causa danos a si ou aos outros, porquê suprimir? Aceitar estas diferenças é um passo importante para criarmos ambientes mais seguros e compreensivos, onde todas as formas de comunicação sejam reconhecidas e valorizadas.

 6) Se na PHDA há dispersão, no PEA pode haver hiperfoco. Quando se tem ambas, na sua opinião qual fala mais alto e em que situações?
Depende do contexto. Em situações de interesse, o hiperfoco prevalece, enquanto em atividades menos motivantes, a dispersão da PHDA pode ser mais evidente. É como viver entre dois extremos: ou tudo interessa demais ou nada interessa o suficiente. E este “vai e vem” pode ser muito cansativo tanto para a criança como para quem a acompanha, pode gerar frustração quando não é bem compreendido.

 

“O bullying continua a existir porque muitas escolas ainda priorizam resultados e notas, deixando de lado aquilo que mais importa: as pessoas”.

7) Sabemos que nem sempre as escolas são inclusivas e funcionam muitas vezes num modelo quase exclusivamente orientado para resultados. Falta informação e empatia para que fenómenos como o bullying verbal e físico não mais existam?
Sem dúvida. O bullying continua a existir porque muitas escolas ainda priorizam resultados e notas, deixando de lado aquilo que mais importa: as pessoas. Quando não ouvimos as crianças, quando não adaptamos a escola às suas diferenças, criamos espaço para a exclusão e a violência. Eu mesma passei por uma situação que me fez perceber a falta de compreensão que ainda existe nas escolas. Quando o meu filho, em um momento de sobrecarga sensorial e emocional, passou por uma crise, ele não recebeu o apoio necessário e ainda foi maltratado. Foi visto de forma desumana, como algo que não merecia a mesma empatia e cuidado que qualquer criança. Isso fez-me perceber a grande lacuna na formação dos educadores, que muitas vezes não estão preparados para lidar com a complexidade das crises que surgem em crianças com neurodivergência. Falta informação e formação contínua, mas acima de tudo falta empatia. Falta reconhecer que cada aluno é único e que não podemos encaixar todos no mesmo molde. A inclusão de verdade acontece quando ajustamos o contexto às crianças – e não o contrário.
Há soluções que já funcionam noutros países e que podiam ser adaptadas à nossa realidade: denúncias anónimas pelos próprios alunos, programas de apoio para vítimas e agressores no ambiente escolar, alunos mentores preparados para proteger e ajudar colegas mais vulneráveis, envolver os próprios alunos na divulgação e combate ao bullying. Portugal precisa de avançar para uma prevenção real e prática. E isso só acontece quando entendemos, de uma vez por todas, que não existe uma criança padrão. Ou a escola aprende a respeitar a individualidade de cada uma, ou vamos continuar a falhar no mais importante: garantir segurança e bem-estar para todos. E para isso acredito ser necessário outras abordagens para além das que conhecemos.

8) Quando as crianças autistas sofrem uma sobrecarga de estímulos visuais ou sonoros podem passar por um meltdown (ficar agitado e chorar) ou shutdown (ficar muito quieto), como informa a Bruna no seu livro “Kevin e o autismo”. Se a maioria dos educadores soubesse isto, o interior das salas de aulas poderia apresentar melhorias?
Com certeza. Se a maioria dos educadores tivesse esse conhecimento, o ambiente escolar poderia ser muito mais acolhedor e respeitoso para as crianças autistas. Entender que um meltdown ou shutdown não é birra, nem desinteresse, nem tentativas de desobediência, mas sim uma resposta a uma sobrecarga real, muda completamente a forma como lidamos com essas situações.
Imagine o quanto poderia fazer diferença ter salas com menos barulho, iluminação mais suave e espaços tranquilos onde a criança pudesse regular-se sem julgamentos. São adaptações simples, mas que demonstram cuidado, empatia e respeito pelas necessidades de cada um.
Quando acolhemos de verdade, damos às crianças autistas a oportunidade de aprender e conviver com mais segurança e bem-estar. E isso não beneficia só elas, mas toda a turma, porque aprender a respeitar as diferenças torna o ambiente melhor para todos.

9) O desconhecimento pode causar medo, aversão e até mesmo violência. Como transformar condições estigmatizadas tradicionalmente pela sociedade em fontes de curiosidade, de comunicação clara e de um maior humanismo?
Quanto mais falarmos sobre esses temas, mais empatia e compreensão podemos gerar na sociedade. É importante dar o nome às condições sem tabu ou estigmatização – autismo, PHDA, dislexia – e evitar rótulos pejorativos. Muitas vezes, na escola, as crianças são apresentadas a colegas com frases como “temos um amigo que é especial”. Mas o que significa ser “especial”? Todos somos únicos na nossa forma de ser e viver. Por que não mudar a abordagem? Em vez de um discurso vago, podemos dizer: “Hoje vamos falar sobre autismo e como ele se manifesta na aprendizagem e no comportamento”. Muitas crianças do 2º ciclo não sabem o que é o autismo e estão presas a imagens desatualizadas, como as dos anos 80, que retratavam autistas como pessoas que evitavam contato visual e balançavam o corpo repetitivamente. No entanto, o espectro do autismo é amplo, e cada indivíduo tem as suas próprias características. A informação é a chave para combater o preconceito e construir uma sociedade mais inclusiva e humana, algo que acredito fortemente poder ser abordado de uma forma mais didática através da arte audiovisual ou através da literatura. A arte é uma forma poderosa de comunicação, capaz de sensibilizar, educar e transmitir mensagens de forma acessível.

10) Qual é o maior desejo da Bruna com esta coleção infantil tão necessária e que sem dúvida vem preencher uma lacuna em saúde mental?
O meu maior desejo com esta coleção é contribuir para a construção de um mundo mais inclusivo, onde todas as crianças, independentemente das suas diferenças, se sintam compreendidas, respeitadas e valorizadas. Crianças que um dia serão adultos neurodivergentes.

 

Paula Cristina Gouveia

 

 

Entrevista a Aliny Lamoglia Parte II “A Perturbação do Espectro do Autismo é uma questão biológica, assim como a Síndrome de Down, a diabetes ou outras questões fisiológicas”

 

Depois da primeira parte, apresentamos aqui o resto de entrevista a Aliny Lamoglia, psicóloga do Desenvolvimento e pós-doutorada em Recursos Digitais para a Inclusão no Instituto Politécnico de Leiria.

 

6. Muitas vezes os pais sentem culpa ou vergonha quando se apercebem que há algo de “errado” com os filhos. Ainda é preciso educar a sociedade no sentido de frisar que o autismo é uma perturbação de neurodesenvolvimento inatamente biológica e que eles não têm de sentir culpa alguma?

 

Há algumas abordagens que acreditam (ainda) que a Perturbação do espectro do Autismo é uma questão relacional, isto é, um problema nas primeiras relações afetivas estabelecidas entre o bebê e os cuidadores. Estas teorias têm consequências até os dias de hoje sobre a forma como muitas pessoas veem o Autismo e advém daí esta ‘responsabilização’ das famílias, principalmente das mães.
Sem dúvida alguma, é preciso informar a sociedade sobre a etiologia do Autismo. Ao menos aquilo que já sabemos, que é uma perturbação neurobiológica, que acontece na embriogênese, isto é, quando o bebê está se desenvolvendo no útero materno, e que as causas ainda são desconhecidas na maioria dos casos. Assim como há vários níveis de Autismo, por isto falamos em “espectro”, há também diferentes causas, dentre as quais apenas algumas foram identificadas até agora, nomeadamente aquelas relacionadas com mutações ou acidentes genéticos e que puderam ser descritas no mapa genético. As demais ainda precisam de investigações… tal como já tem acontecido. Por exemplo, a San Diego University tem um estudo, liderado pelo Professor Alisson Muotri (https://igm.ucsd.edu/faculty/alysson-r-muotri), que a partir de células-tronco produz organóides chamados de minicérebros. Em ensaios clínicos, a estes minicérebros são administrados medicamentos e espera-se que seja possível, a partir das respostas desses organóides, pensar em uma terapêutica medicamentosa personalizada para pessoas com Autismo.
É importante que cada vez mais pessoas saibam que a Perturbação do Espectro do Autismo é uma questão biológica, assim como a Síndrome de Down, a diabetes ou outras questões fisiológicas.

 

“Faz parte de uma certa “mitologia” sobre o Autismo a ideia de que essas crianças não fazem vínculos afetivos”

 

7. Olhar nos olhos, sorrir em resposta ao sorriso do outro, seguir o apontar, usar linguagem referencial são comportamentos ditos típicos. Pelo contrário, a criança autista apresenta mais rigidez e repetição de comportamentos e/ou movimentos bem como menos capacidade de estabelecer vínculos. O que fazer para integrar alguém que parece isolado no seu mundo?

Ótima pergunta. Há muitas promessas que envolvem medicações milagrosas, dietas, terapias sem evidências científicas. Mas o Autismo é, por definição, uma perturbação no dispositivo inato para a interação. Assim sendo, para integrar alguém que tem dificuldade de interação é necessário mais e mais interação. O programa de intervenção com o qual eu trabalho (https://option.org/about-us/autism-treatment-center-of-america/) procura sistematizar no ambiente natural da criança as intervenções que todos os adultos envolvidos nos cuidados podem realizar. Utilizando alguns dos exemplos que você trouxe, como promover o contato visual com uma criança que o evita? Criando situações em que, em primeiro lugar, a criança precise olhar para o adulto a fim de que algo aconteça, seja obter um alimento, um brinquedo ou um afago; em segundo lugar, que este momento seja bom e, portanto, reforçador para que ela queira, em uma outra situação, olhar para o adulto novamente. No caso de “seguir o apontar”, diante de alguma necessidade da criança, o adulto fará a ação de apontar sistematicamente, até que a criança crie uma contingência entre o apontar do adulto, a identificação visual daquilo que deseja e, por fim, o alcance do seu objetivo.

No caso dos vínculos afetivos, costumo dizer que faz parte de uma certa “mitologia” sobre o Autismo a ideia de que essas crianças não fazem vínculos afetivos. Isto não é verdade de jeito nenhum! Há idiossincrasias na forma como pessoas com Autismo se relacionam, mas é uma questão de qualidade dos vínculos – sob o olhar de pessoas típicas – e não de ausência dos mesmos. O que, efetivamente, construirá estes vínculos é o que for realizado em parceria. É comum que, ao chegarem ao meu espaço de atendimento, crianças pequenas chorem, queiram ir embora, fiquem agarradas ao cuidador e não interajam comigo. Ao longo de algumas sessões, começam a observar, percebem que o cuidador está à vontade, interagem comigo e tudo começa a fluir… até o momento em que não querem ir embora ao final da sessão.

 

“Penso em uma campanha nacional sobre literacia em desenvolvimento inicial”

 

8. Escreveu que a fala e a marcha são sobrevalorizados como marcos de desenvolvimento. Como sensibilizar os pais para que estejam atentos ao manancial de pistas dadas pelo próprio filho para evitar um diagnóstico tardio de Perturbação de Espetro do Autismo (PEA)?

Penso em uma campanha nacional sobre literacia em desenvolvimento inicial, algo que fosse veiculado pela RTP, SIC, houvesse outdoors espalhados pelas ruas, com a participação do Serviço Nacional de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI). As equipes de Saúde Familiar também deveriam estar envolvidas nesse processo. Há alguns dias estive em uma Unidade de Saúde Familiar para capacitar os profissionais em identificação precoce de risco para Autismo e apresentei o ASDetect (asdetect.org). Falamos sobre os marcadores da fala, marcha e alfabetização e o quanto estas habilidades são precedidas de outras, não tão conhecidas e, por isto, pouco valorizadas. Acredito fortemente que se falarmos repetidamente sobre contato visual, sorriso, gestos comunicativos, linguagem referencial será possível influenciar mais e mais pessoas a identificarem perturbações do neurodesenvolvimento logo no início.

 

9. No filme “Meu filho, meu mundo” (no original “Son rise – A miracle of love”) de 1979 há uma dedicação muito grande à criança e a consciência de que pode haver avanços e recuos, mas que devem ser sempre festejadas as pequenas vitórias. O que mais a impactou neste filme que possa recomendar a sua visualização aos pais e comunidade como um todo?

O que mais me impacta ainda neste filme, apesar de ser tão antigo, é a incongruência entre o que a Medicina da época é capaz de dizer sobre o Raum e o que os seus pais são capazes de realizar a partir do pouco conhecimento divulgado sobre o Autismo. Eles conseguem fazer tanto com tão pouco! E descobrem que a conexão com o filho é a “tábua de salvação” que nenhum especialista pôde supor. A partir desta descoberta, começam a elaborar o Son-Rise Program, baseado em quatro princípios fundamentais: contato visual; comunicação não-verbal; comunicação verbal e flexibilização do pensamento. Os objetivos do Programa são descritos e ganham forma a partir de um plano de desenvolvimento de brincadeiras e jogos interativos, que constituem o livro “Brincar para Crescer” de Tali Berman e Abby Rappaport (https://www.inspiradospeloautismo.com.br/wp-content/uploads/2014/01/Preview-Brincar-para-Crescer.pdf).

 

10. Um dos objetivos do Novo Milénio é “Nenhuma criança deixada para trás”. Como capacitar o núcleo familiar, educadores de infância e prestadores de cuidados de saúde para que intervenham logo que suspeitam de um problema de desenvolvimento, como o de Autismo, numa criança?

E primeiro lugar, sou professora, então acredito na Educação como transformadora dos paradigmas que as sociedades sustentam. No caso dos conhecimentos sobre desenvolvimento inicial, acredito que a formação de educadores e de profissionais da saúde deveria incluir em suas unidades curriculares os conhecimentos adquiridos até aqui sobre desenvolvimento inicial, o que se sabe hoje sobre os “primeiros mil dias”, sobre os quais falamos acima. A partir destes profissionais, as ideias da intervenção precoce seriam, paulatinamente, transferidas para cuidadores e não veríamos mais famílias que relatam as condições de suas crianças e ouvem em resposta frases como “cada criança tem seu tempo”, “você está muito ansiosa, mãe” ou “ele nem parece autista, olha como é apegado a você!”.

Em breve pretendo desenvolver um estudo sobre inter-brain synchrony com o objetivo de mostrar que crianças muito pequenas são capazes de se envolver em situações de brincadeira com seus cuidadores e poderemos registrar, com um dispositivo de imagem cerebral, o exato momento em que os dois cérebros sincronizam e a atividade realizada pela criança se transforma em uma aprendizagem.

Um dos objetivos deste estudo será demonstrar que quanto mais cedo essas interações acontecerem, melhor será o prognóstico para a criança com Perturbação do Espectro do Autismo.

 

Paula Cristina Gouveia

 

Entrevista a Aliny Lamoglia Parte I “A Intervenção Precoce subverte a neurobiologia do Autismo”

 

Aliny Lamoglia é psicóloga do Desenvolvimento, mestre em Psicologia Clínica e Doutora em Psicologia Social.

Recentemente concluiu o pós-doutoramento em Recursos Digitais para a Inclusão no Instituto Politécnico de Leiria.

Atualmente atende crianças, adolescentes e adultos com Perturbações do Neurodesenvolvimento;

oferece formação para profissionais da Saúde e da Educação em Identificação e Intervenção precoces em

Autismo e é responsável pelo Serviço de Saúde Mental e Bem-estar do Instituto Piaget de Vila Nova de Gaia.

Fomos falar com ela para saber das últimas descobertas acerca da Perturbação do Espectro do Autismo (PEA).

 

1. A sua tese de pós-doutoramento intitula-se “Biomarcadores de habilidades sociais e de comunicação em bebés – Intervenção precoce como redução de danos” (2024). Quais foram os fatores percursores que impulsionaram a investigação deste tema?

Em primeiro lugar, sou Psicóloga do Desenvolvimento, e foi o fato das crianças chegarem muito tarde ao meu consultório, mesmo quando se tratava de graus severos de Perturbação de Espetro do Autismo (PEA), que me fez começar a questionar por que não chegavam mais cedo, já que os sinais/sintomas já estavam lá e, supostamente, essas crianças foram acompanhadas por pediatra desde o início da vida. Não consegui ter a resposta para esta pergunta até hoje. Outro fator importante foram as descobertas da Neurociência – minha paixão – que afirmam que o cérebro de crianças pequenas, até dois anos de idade, é tão plástico que em nenhuma outra fase da vida será possível modificar estrutura e funcionamento na dimensão em que acontece nos “primeiros mil dias de vida”. Existe até mesmo um projeto, o First Thousand Days que acompanha gestantes e depois os dois primeiros anos da criança para identificar padrões de cuidados, vínculos e aprendizagens e correlacioná-los com os rumos do desenvolvimento. Essas descobertas mostram que quanto mais cedo é possível intervir no desenvolvimento das crianças, melhores são os resultados em termos de Habilidades Sociais, Comunicação. Estas, por sua vez, são as competências que estão comprometidas (em algum grau) nas Perturbações do Espectro do Autismo, área do neurodesenvolvimento a qual me dedico clínica e academicamente desde 2013. Por fim, as evidências de melhora que consigo ver no meu microuniverso – o das crianças com PEA que acompanho – me fazem ter certeza que a Intervenção Precoce subverte a neurobiologia, como costumo dizer.

2. A educação inclusiva está contemplada na UNESCO para que estas crianças tenham acesso a bons cuidados de saúde, educação, nutrição e moradia. Como se justificam as discrepâncias com a realidade?

Você já deve ter ouvido sobre as barreiras à inclusão. Estas barreiras podem ser arquitetônicas, pedagógicas ou atitudinais. As atitudinais são aquelas que dependem das ações das pessoas para acontecerem. São também as mais difíceis de serem controladas ou transformadas. Vou aqui falar apenas de alguns aspectos do cuidado que demandam políticas públicas para acontecer: saúde e educação. Todos que atendem ou cuidam de crianças de até dois anos de idade deveriam conhecer os marcos do desenvolvimento, para em qualquer caso de atraso ou alteração na qualidade da resposta dada pela criança, algum especialista possa ser acionado, medidas sejam tomadas e intervenções sejam possíveis. Ocorre que muitas destas pessoas não parecem levar a sério os momentos do desenvolvimento antes dos dois anos de vida nos quais importantes habilidades devem acontecer. Sabem que andar, falar e aprender a ler e escrever são importantes, mas não parecem saber que antes de andar é preciso apontar; antes de falar é preciso compreender comandos verbais simples e antes de ler e escrever é preciso ser capaz de recontar uma historinha ouvida. Por isto, frases como “cada criança tem seu tempo” ainda têm eco em muitas famílias, professores e profissionais de saúde.

“Cheguei mesmo a pensar se crianças com Deficiência Intelectual não estariam confundidas com crianças com PEA”

3. Segundo dados estatísticos do CDC/EUA (Centro de Controlo e Prevenção de Doenças) 1 em 36 crianças é diagnosticada com a Perturbação de Espetro do Autismo (PEA). Ficou surpresa quando chegou a este número?

Não fiquei surpresa porque venho acompanhando estes números há muito tempo e também porque trabalho com formação de professores e de médicos e ouço o que dizem sobre as incidências de PEA.
Neste último final de semana estive em uma formação com animadores socioculturais, profissionais que trabalham com as crianças nas escolas públicas no prolongamento do horário escolar. O que vi e ouvi foi muito grave! Quase todos os profissionais relatam ter uma ou mais crianças com PEA. Cheguei mesmo a pensar se crianças com Deficiência Intelectual não estariam confundidas com crianças com PEA nestes relatos.

4. A perceção da chamada do nome e a atenção compartilhada (apontar para mostrar algo a alguém) fazem parte do desenvolvimento típico aos 8 meses. Devem ser sinais de alarme quando a criança não os apresente?

Sim, sem dúvida alguma.

“As atividades as quais o cérebro desta criança é exposto definirão as conexões que se tornam robustas”

5. Ouvimos várias vezes que uma criança se deve desenvolver ao seu próprio ritmo, mas no caso do autismo, a intervenção precoce é muito importante, devido à plasticidade cerebral. Podia explicar melhor este conceito e de como nos primeiros mil dias de vida se fazem conexões essenciais ao funcionamento da criança?

Falamos um pouco disto acima. Na verdade, todas as crianças precisam de estímulos de Comunicação e Habilidades Sociais; uma criança com desenvolvimento típico que é negligenciada também terá atraso, um atraso circunstancial, mas nem por isto menos grave. Toda criança deve se desenvolver no seu próprio ritmo dentro de uma margem de ‘tipicidade’. Por exemplo: é típico que uma criança fale as primeiras palavras entre os 9 e os 14 meses. Esta é a ‘margem de segurança’ para ficarmos despreocupados. Antes dos 9 meses é precoce, depois dos 14 meses significa que o contexto interacional desta criança não foi capaz de prover os meios necessários para que ela partilhe o código linguístico com os seus pares. Algo impediu este desenvolvimento, pode ser falta de estímulo, perda de audição, déficit intelectual ou uma perturbação do neurodesenvolvimento e só uma investigação detida será capaz de nos dizer o que ocorreu. Um bebê humano nasce com uma quantidade de neurônios muito superior àquela que um adulto típico possui. Por que isto acontece? Porque as atividades as quais o cérebro desta criança é exposto definirão as conexões que se tornam robustas e, por isto, são mantidas e aquelas que, por falta de uso, não se consolidam no cérebro. É isto que chamamos de ‘podas neuronais” que acontecem em alguns momentos do neurodesenvolvimento.

 

Paula Cristina Gouveia

 

Entrevista a Emilie: “Não posso, ninguém pode mudar o mundo, mas podemos mudar, informar e capacitar, quem nos rodeia”

 

Autora da página de Facebook e Instagram “Emilie mas não pareces autista”, atualmente com 10,1 mil seguidores, Emilie dedica-se a divulgar o autismo, condição que a acomete a ela e a um dos seus filhos. Nesta longa entrevista falamos de estereótipos, medos e esperanças para como se possa vir a encarar o autismo a nível pessoal e profissional.

 

“Depois do diagnóstico, obtive imediatamente alívio, foi libertador, tirou-me culpa”

 

1_ Quando falamos de autismo, falamos de uma perturbação de desenvolvimento neurológico e não de uma doença mental. Sente que há ignorância por parte do público em geral e a tendência a meter tudo na mesma caixa? 

Sinto imensa ignorância a nível do autismo, muito dessa ignorância vem da comunicação social e dos casos que passam na televisão, a tentar forçar o drama de qualquer perturbação e deixando até, passar informações falsas pelos convidados, pessoas não informadas elas próprias sobre as condições dos filhos. E depois torna-se um círculo vicioso, desinformação, passada por quem deveria perceber do assunto, em programas muito vistos pela população que consome muitos conteúdos deste género, com drama, soluções milagrosas ofertas por clínicas, mais drama …Isso vende. Depois há também a imagem da perturbação mental devido aos filmes onde todos os autistas são génios que fazem cálculos mentais impossíveis com vários dígitos, mas são incapazes de olhar nos olhos e têm tiques acentuados. Não há meio termo.

 

2_ A Emilie tem atualmente 40 anos e dois filhos (um neurotípico e outro autista) mas só foi diagnosticada com autismo tardiamente, aos 36 anos. Sabemos que tanto na Psiquiatria como na Neurologia há conjuntos de sintomas que se sobrepõem. Como justifica este atraso em lhe darem o diagnóstico correto? Sente que foi privada de alguma forma?

O atraso foi provocado por ser mulher. O autismo foi estudado em meninos. Nas meninas, o autismo manifesta-se de forma completamente diferente, a vários níveis e conseguimos por norma imediatamente e de forma inata imitar o socialmente aceitável ( masking) para sobreviver. Não tive profissionais competentes. Após o diagnóstico do meu filho, e numa tentativa de perceber melhor o que era o autismo afinal, encontrei um pequeno parágrafo sobre autismo em mulheres…e revi-me imediatamente. Pesquisei mais, fiz testes em casa, que não deixavam margem para dúvida, no entanto queria a validação de um profissional. Encontrei uma psiquiatra que não hesitou no diagnóstico, refiz testes, e não houve margem para dúvidas, mas foi a primeira vez que uma psiquiatra me colocou as perguntas corretas. Há perguntas que inúmeros psiquiatras nunca me colocaram na vida. Depois do diagnóstico, obtive imediatamente alívio, foi libertador, tirou-me culpa. Sou assim por um motivo, não sou má pessoa. Tenho efetivamente uma diferença neuro biológica que me faz ver, ouvir, sentir e percecionar o mundo de forma diferente. Depois de alguns meses veio uma revolta enorme: “Porque não me diagnosticaram antes? Qual era a dúvida?” Tentei então canalizar está revolta para a escrita e passei a ter a página no Facebook e Instagram “Emilie mas não pareces autista”

3_ No mundo laboral de hoje vemos muitas vezes anúncios de empregos com requisitos como “resistência ao stress” e “capacidade de trabalhar sob pressão”. Pela sua experiência e dado que os autistas têm tendência à sobrecarga sensorial, considera isso um cocktail perfeito para o burnout profissional?

 

Absolutamente. Não há lugar para a neurodivergência. O que é pena porque somos trabalhadores muito leais, muito seguidores de regras, normas, protocolos, algoritmos. Estes anúncios deveriam ser proibidos até para neurotípicos, essas expressões usadas: “resistência á pressão, ao stress,” são igualmente de um abuso infundado do ser humano, em troca de um ordenado mínimo muitas vezes.

 

4_  Como poderíamos adaptar melhor o mundo do trabalho às pessoas autistas? O que sente a Emilie que consegue gerir bem laboralmente e qual é o ponto de saturação em que tudo se torna demasiado? 

Às vezes basta teletrabalho. Simples. Investimento para a empresa:” um computador”. Se realmente for necessário um trabalho presencial, não fazer uso de “Open spaces ” muito na moda, que dão a sensação de abertura para o diálogo, e que nos obrigam a estar mais concentrados em controlar estereotipias (movimentos repetitivos de autorregulação), e só isso é uma pressão enorme. Substituir antes por um escritório fechado, sem janelas, com uma porta, possibilidade de regular a luz, o som (se houver som para todos), computador, secretária, cadeira, permitir algo que nos dê possibilidade de trabalhar no chão, como almofadas, tapetes, etc

 

5_ Nas escolas há crianças com doenças mentais e autismo que os pais preferem não serem sinalizadas como tal, com medo de represálias, para as protegerem ou proporcionarem um crescimento dito “normal”. A Emilie optou por ser uma voz pública da Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) sua e do seu filho. Sente que quebrar tabus é o melhor caminho de ir em frente?

Sim. Temos de dar a cara, eu dou a cara na minha página, tenho de ser coerente com aquilo que defendo. Ao partilhar sobre autismo, na primeira pessoa, às vezes sobre o meu filho mas de forma mais discreta, para não o expor diretamente porque ele tem o direito à sua privacidade. Vou de headphones e óculos de sol para o centro comercial, e o meu filho se quiser usar usa também. Não posso dizer-lhe podes ser quem és, não te escondas, e eu agir de forma diferente. Não seria lógico. Aqui em casa fala- se de autismo, como se fala de um como correu um dia qualquer. Tentamos não patologizar o assunto, não “evitar” a palavra. Costumo referir ao meu filho, embora pequeno, que sim ele é autista, eu sou autista, e sim que vida vai ser um pouco mais complicada, mas que estarei ao lado dele para o guiar e defender. Já dou palestras sobre Autismo na primeira pessoa e o que é ser mãe de autista, na escola dele. Houve abertura da direção do agrupamento para isso, e avancei sem medos de mostrar, as várias faces do autismo.

 

6_ O seu filho sofreu um choque anafilático devido a uma alergia severa à proteína do leite e a Emilie teve de o injetar de emergência com adrenalina, uma situação certamente muito traumática. As ementas escolares só lhe foram fornecidas depois de muita insistência. Sente que na justiça somos apenas mais um caso ou mais um número até ser acionada a Comunicação Social para dar voz às lutas e preocupações?

Nalgumas situações sim, falo do ano desse choque anafilático, de 487 emails num ano letivo, e emails não de 3 linhas mas romances inteiros. Tive de batalhar por aquilo que está na lei, escalar para as entidades competentes e fiscalizadoras. Hoje temos uma relação de mútuo respeito com toda a direção escolar, porque perceberam que não me deixo calcar, que sei os meus direitos, que procuro o diálogo, e que tento resolver entre adultos antes de escalar a quem fiscaliza. As ementas foi uma situação com a Câmara Municipal diretamente, que estranhamente apesar de eu ter recorrido às entidades todas, ter feito queixa no Ministério Público (que mantenho para ir a julgamento espero eu, por crime de ofensa à integridade física grave), só quando veio a comunicação social,  quando perdi a cabeça ao fim de 2 meses, (odeio exposição mediática), nalgumas horas obtive ementas e nunca mais tive problemas em obter. O lado de bom de ter recorrido à comunicação social, é que agora sabem que se digo, atenção vou contactar a televisão, eles sabem que não é bluff.

 

7__ A Emilie partilhou recentemente na sua página de Instagram que as pessoas autistas têm uma probabilidade sete vezes maior de tentar suicidarem-se do que pessoas não autistas. Na sua opinião a que se pode atribuir esse facto tão alarmante?

Os Autistas nível 1 de suporte, aquele ” autismo que não se vê, que não parece”, é difícil de provar, não se vê, as pessoas acham-nos perfeitamente funcionais (mas não sabem a que custo), raramente temos direito a acomodações, quase temos vergonha de pedir ajuda porque afinal, se aguentamos até agora, se temos trabalho, família, casa….mas na nossa cabeça a invalidação das nossas dificuldades é algo de difícil de combater. Por exemplo, a maioria das pessoas não sabe, sim, eu dou uma palestra sobre autismo, sozinha, num palco, para um anfiteatro, respondo a perguntas, etc., mas como sou adulta, já tenho mecanismos de proteção, (masking), no entanto há o depois. Após a palestra tento refugiar-me no meu lar, no meu quarto, já não consigo jantar com a minha família nem permanecer à mesa, e fico 2 dias às escuras, com headphones de cancelamento de ruído, cheia de dores musculares como se tivesse febre e chego a ficar sub febril, porquê? Porque entrei em sobrecarga sensorial. As pessoas não sabem o desgaste que temos em relação a um neurotípico em pequenas tarefas, um convívio “obrigatório” por algum motivo, uma ” reunião” familiar, tudo é demais e deixa-nos num cansaço indescritível em que muitas vezes, até pela forma como vemos o mundo e o entendemos, o suicídio é uma tentação enorme. Porque nos sentimos ainda em adultos extremamente diferente dos outros.

 

 

8_ Há uma frase que diz que não é um triunfo manter-se saudável numa sociedade doente. Concorda com esta afirmação? Em que aspeto poderíamos melhorar como seres humanos?

Hoje em dia vangloriam- se os cuidadores, guerreiros, as mães de crianças especiais, gaba-se a resiliência de alguém…. Ninguém pediu para ser resiliente. Somos porque não temos alternativa. É doentio. Temos de ter abertura para aprender sobre as deficiências visíveis, não visíveis, não infantilizar a pessoa com deficiência. É um trabalho de comunidade. Daí eu dar a cara também porque penso, se educar hoje 10 pessoas sobre autismo por exemplo, essas pessoas poderão educar mais 10 e assim sucessivamente. Não posso, ninguém pode mudar o mundo, mas podemos mudar, informar e capacitar, quem nos rodeia.

“Usar qualquer deficiência como insulto só demostra o baixo nível da população em geral”

 

9_ O que sente enquanto pessoa autista e mãe de um filho autista ao ver a condição ser mencionada abertamente em termos pejorativos como ter “uma visão autista da realidade” ou “estar a ter uma perspetiva autista”?

 

Muito sucintamente é incrível, sendo a língua portuguesa uma língua com um léxico tão variado, ir buscar perturbações, doenças, como insulto. É triste e deveria ser punido. Demostra claramente que nem sabem o que é o autismo porque nas frases que já ouvi, não faz qualquer sentido. Usar qualquer deficiência como insulto só demostra o baixo nível da população em geral, até daqueles a quem se dá voz e visibilidade, como na política por exemplo.

10_ O que gostaria que o público em geral soubesse sobre o autismo e a que aspetos acha que não se dá a devida atenção?

 

Para mim, deveria ser obrigatório que a cada workshop, palestra, congresso, houvesse um autista presente no painel. Quem melhor do que nós para falar sobre a nossa condição. Embora cada um de nós tenhamos características específicas, temos muita coisa em comum. E continuam a falar de nós, sem nós, e isso é desrespeituoso. Faz sentido falar de acessibilidade para cadeira de rodas, sem convidar alguém em cadeira de rodas no painel? Não! Então porque é diferente no autismo? Deveria haver sempre um paciente convidado em qualquer palestra sobre saúde, independentemente do tema. Porque precisamos de todos, para melhorar a nossa vida. Precisamos no caso do autismo, do psiquiatra, do psicólogo, do psicomotricista, de terapeuta da fala, do terapeuta ocupacional, e do cuidador do autista, do autista. Só assim as coisas podem evoluir.

 

Paula Cristina Gouveia

 

 

O paradoxo da produtividade

Foto de Andrew Neel na Unsplash

 

A saúde mental não é algo fixo, gravado na pedra, que funciona exatamente da mesma forma para todas as pessoas. Recebemos muita informação, sobretudo conteúdos contraditórios entre si e podemos ficar inquietos ou angustiados por não sabermos onde está a verdade e para onde nos devemos virar.

Por um lado temos o grupo da produtividade que acredita em trabalhar em quase cair para o lado, que não se põe em primeiro lugar nem às suas relações interpessoais. O trabalho e os lucros que dele advém são sempre prioridade e acredita-se que a exaustão extrema a nível profissional (burnout) só acontece aos outros. Até que acontece a uma dessas pessoas e lhes faz ver que a balança em que mediam o seu valor pelos seus feitos laborais, estava muito desequilibrada. Que para termos saúde perfeita é preciso termos tempo para lazer, para respirar em paz e reduzir ao mínimo o stress.

Por outro lado, temos o grupo do autocuidado levado ao extremo, isto é, que não consegue realizar nenhuma tarefa nem algo que exija disciplina. Se o primeiro grupo se sente culpado por sentir que nunca trabalha o suficiente e é capaz de adiantar tarefas profissionais mesmo nestas épocas festivas, o segundo grupo como que se desliga e passa dias na cama, por vezes. Sente-se incapaz, em sofrimento, letárgico e pode surgir um possível diagnóstico de depressão. É importante notar que cuidar de si não é desistir das metas e sonhos por medo ou desalento.

Tratam-se de duas mentalidades e posições distintas perante a vida: uma em que nada é suficiente, outra em que nada vale a pena. Como sempre, aconselha-se o caminho do meio, o da moderação. Sentimos-mos bem quando somos eficientes, quando executamos o nosso trabalho com excelência e brio. Cuidar-nos exige saber respeitar os nossos períodos de descanso e não menosprezar a importância do sono.

Neste Novo Ano que se avizinha, trace planos e empenhe-se, mas não se esqueça que somos feitos de afetos e precisamos de equilíbrio em todas as frentes para funcionar.

 

Paula Gouveia

 

Mutismo Seletivo, uma história real

 

Salomé Castro é uma mãe que gere a página de Instagram ms_ mutismoseletivo (Meu Sol Mutismo Seletivo) onde partilha informações sobre a condição que acomete o seu filho, Martim, de 6 anos de idade.

Fomos falar com ela para saber mais sobre o mutismo seletivo e  sobre o Martim.

“Quero apenas que ele seja um excelente ser humano, capaz de aprofundar as suas competências, sem limitações que o impeçam de se amar a si mesmo”.

 

1_ Como foi o parto e o desenvolvimento inicial do seu filho?

A gravidez do Martim foi planeada e correu lindamente. Foi um parto por cesariana porque ele estava numa posição sentada, o que inviabilizou o parto vaginal. O desenvolvimento dele, quer no útero, quer após o parto sempre foi dentro dos parâmetros normais.

2_ Com que idade percebeu que ele tinha um problema?

O Martim vivenciou o COVID-19 numa fase muito precoce, previamente à sua entrada na pré-escola. Assim, uma maior convivência com pessoas fora do nosso núcleo familiar só se verificou quando ele entrou para a pré-escola, com 3 anos de idade. Foi nessa fase que o Mutismo Seletivo se manifestou.

Ele não falava com os colegas, nem com as educadoras, e manifestava rigidez corporal e inexpressividade. Paralelamente, começou a fazer retenções urinárias porque a incapacidade de se expressar o impedia de pedir para ir ao WC. Esta situação obrigou a sucessivos internamentos hospitalares, onde tinha de ser algaliado… o que resultou numa experiência altamente traumática. Depois de descartadas todas as patologias físicas que podiam justificar essas retenções urinárias, tudo apontava para uma causa de origem psicológica.

A primeira vez que ouvi falar de Mutismo Seletivo foi quando a educadora do Martim me falou dessa possibilidade. Na sequência do seu alerta, consultei um pedopsiquiatra que, após alguns meses de acompanhamento, formalizou o diagnóstico de Mutismo Seletivo.

3_ Para quem não conhece, o que é o mutismo seletivo? Quais são os sintomas que foram identificados desde logo na sua criança?

O Mutismo Seletivo é um transtorno de ansiedade infantil em que a criança é incapaz de falar em alguns ambientes e com algumas pessoas. Regra geral, a criança fala normalmente em casa ou quando está sozinha com pessoas próximas, mas não consegue falar noutros ambientes sociais como a escola, em público ou em reuniões de família. O Martim, por exemplo, é uma criança que desde cedo se expressa verbalmente com grande fluência de vocabulário e que, como se costuma dizer, “fala pelos cotovelos”. Mas apenas em casa e com a família mais próxima.

A criança mutista sente que não consegue falar e esta incapacidade gera nela uma angústia tremenda. Independentemente da situação, mesmo com dor, ela não comunica. Por exemplo, uma situação que espantou os médicos foi o facto de o Martim ao ser algaliado — um procedimento doloroso e que motiva sempre muito choro e berros das crianças — não ter emitido um único som. As lágrimas caíam-lhe, ele tinha o rosto todo vermelho, mas estava inexpressivo e em absoluto silêncio; uma experiência muito violenta para ele e para mim.

Muitas vezes, o Mutismo é confundido com timidez, dificuldade de adaptação a um ambiente… mas é fundamental que as pessoas percebam que, na realidade, é muito mais do que isso.

Regra geral, o Mutismo Seletivo ocorre entre os 3 e 6 anos de idade e os sintomas podem variar de acordo com cada criança. Na sua génese é a incapacidade de as crianças se libertarem de uma prisão de silêncio. Elas sabem falar, elas querem falar, mas não conseguem. Não têm qualquer atraso cognitivo, mas há um bloqueio que as domina por completo e que pode atrapalhar bastante a sua qualidade de vida e o seu desempenho escolar. Além de lhes causar grande sofrimento, provoca dificuldade de interação social (que é essencial para o seu desenvolvimento) e compromete a sua autoestima.

4_ Como tem sido a evolução do seu filho desde que foi diagnosticado com essa condição?

O Mutismo Seletivo é um transtorno relativamente raro e ainda se desconhecem as causas, embora os especialistas acreditem que poderá ser motivado por uma componente genética a par de questões ambientais. O certo é que é muito importante ter um diagnóstico precoce e, felizmente, o meu filho foi diagnosticado bastante cedo. Está diagnosticado há cerca de três anos e a evolução tem sido progressiva, mas sólida. Creio que ele terá sempre uma componente de ansiedade associada à sua personalidade, porém, atualmente, ele interage com os seus pares, com os adultos integrados nas suas atividades diárias e regulares, com a família alargada. Ainda não fala com pessoas que acabou de conhecer ou que não vê com regularidade, mas há no seu comportamento geral uma clara descontração. É um caminho de superação a longo prazo, mas estou muito satisfeita com a evolução do meu filho.

5_ Que terapias está a fazer o seu filho atualmente?

Após o diagnóstico, o meu filho começou por fazer terapia sensorial, a par de acompanhamento em pedopsiquiatra. Terminada a terapia sensorial, iniciou psicoterapia com uma pedopsicóloga — sessões que mantém semanalmente.

Mais recentemente, quando completou 6 anos, iniciou também medicação, por indicação da pedopsiquiatra. A medicação visa a redução da ansiedade para que ele esteja mais recetivo a experienciar novos desafios, com vista a promover um reforço positivo que incentive o seu comportamento verbal e as habilidades de interação social, melhorando assim a sua autoestima.

6_ Quais são os passatempos ou áreas de interesse que ele revela ter?

O meu filho, como a maioria das crianças mutistas, têm uma inteligência e sensibilidade acima da média. Adora fazer puzzles, desenhar, ver TV, andar de patins, correr, mexer na terra, saltar nas poças de água… brincar! Iniciou agora o ensino básico e tem toda uma vida pela frente para escolher as áreas de interesse que o motivarão e realizarão. Enquanto mãe, quero apenas que ele seja um excelente ser humano, capaz de aprofundar as suas competências, sem limitações que o impeçam de se amar a si mesmo, de estabelecer relações sociais saudáveis e de ser feliz.

7_ Quais são as suas expetativas para o futuro?

As minhas expetativas são as mais otimistas. Sei que a ansiedade do meu filho estará sempre lá, mas também sei que ele está muito bem acompanhado e que aprenderá, passo a passo no seu crescimento e evolução, as melhores estratégias para lidar com ela.

Em relação ao Mutismo Seletivo, gostaria que fosse cada vez mais do conhecimento geral, para que mais crianças mutistas possam ser corretamente diagnosticadas e possam ter o acompanhamento precoce de que precisam e que merecem. Gostava que o Mutismo Seletivo fosse percecionado por aquilo que é: um transtorno de ansiedade que provoca um enormíssimo sofrimento a quem dele padece — mas que pode ser ultrapassado! Com consciencialização. Sem estigmas.

 

Paula Gouveia

 

Agorafobia

Foto de Nik na Unsplash

 

O que acontece se chegamos a uma estação de comboios e não conseguimos respirar normalmente, o coração parece que nos vai saltar do peito, todo o corpo treme e as mãos, para além de trémulas, estão húmidas? A multiplicidade de estímulos pode fazer com que nos sintamos numa situação de perigo em que, entre o lutar e o fugir, queremos fugir.

Outro exemplo é nos centros comerciais. Começamos a evitar espaços cheios de gente em que possam estar a olhar para nós, em que há muitas luzes, muitas vozes, muitas escadas rolantes apinhadas de pessoas, muito ruído.

O que acontece se certas situações (ruas estreias, pontes) fazem essa sensação de ansiedade disparar até a um ponto de pânico e perdemos o controlo sobre as nossas sensações, como se o nosso corpo pertencesse subitamente a outra pessoa?

Ter medo de estar em multidões, de trânsito excessivo geram círculos viciosos em que se passa justamente a ter medo de ter medo.

Se tal como eu, está a atravessar um período de maior ansiedade (em que as insónias podem ou não ser um sintoma também), não hesite em procurar ajuda. A terapia cognitivo-comportamental, feita por um psicólogo clínico experiente ou com quem simplesmente sentiu um clique de compaixão, pode fazer maravilhas.

Os nossos pensamentos são muito poderosos, pelo que é importante pensar em si com empatia. Trate-se como prioridade e averigue quais são as suas necessidades. Não há garantias nem curas definitivas e por vezes, a cada passo em frente, dá-se dois para trás.

Contudo, não se deixe vencer, não se julgue, não deixe de sentir determinação. A exposição às situações que lhe causam descontrolo emocional deve ser gradual, de forma a construir a sua autoconfiança e solidificar aquela voz interior que diz: “Eu consigo”. E mesmo que venha a não conseguir, não se martirize por isso.

As fobias podem ser debilitantes mas a mente tem em si propriedades surpreendentes. Acredite em si!

 

Paula Gouveia

À Espera do Comboio

 

Hoje, nenhum pombo. Seria de supor alguma melhoria higiênica na estação. Mas a sujidade é tão gigantesca que um microscópio só mostraria o que já é visível a olho nu. Sujidade sem nome, vinda de outras paragens, grudada nos assentos malhados, e que esparramada, faz imagem de mapas desconhecidos agora estampados no chão. Invocar o cheiro, não me atrevo, as palavras merecem o mínimo de respeito. Quem sujou o mundo? Ora, sei que uma mera estação não é o mundo, mas o mundo por grande que seja, é uma abstracção que se concede sê-lo, na prática, no pequeno canto onde estamos. A metáfora do amor que um dia nos medrou a boca, ardente, encontra seu equivalente real nas beatas. Milhões de beatas. Dou uns passos, ali, e bem ali em cima dos carris uma nota de 20 euros, rasgada, só pela metade, a mostrar o perigo do materialismo tão no caminho certo do abalroamento existencial. Quem sujou este meu mundo? Depois, as pessoas. Como um desfile de moda de sujos, fazem questão de combinar com as tendências locais de sujidade. Não basta a imundície física, chafurdam o cérebro na lama dos telemóveis e sorriem agraciados por alguma bênção nauseabunda. Parecem trazer nas mãos bolas de cristal que apesar de sobrecarregadas de imagens são tão vazias quanto as verdadeiras. Com a diferença de que as esferas de cristal de antigamente sempre serviam para estimular a imaginação. Felizmente que tenho algum dote de escrevente e limpo as feridas deste leproso tédio com qualquer borrão. Por isso, vo-lo digo, a verdade, literatura, quando é sincera, emerge como golfada profunda dos intestinos da alma.
De repente, recordações da tempestade. A razão em desespero salvar o barco tenta. Ondas gigantes vão e voltam, fustigam a embarcação, e batem, batem e batem no mar vivo do coração. E só depois a razão avista a ilha, virgem, pura. Limpa.
Quando penso nada mais haver para escrever ou observar, algo reaviva o meu interesse e ponho-me à escuta. A meu lado uma senhora fala ao telemóvel. Reconheço a voz. Percebe-se facilmente que é o mesmo timbre que se ouve das colunas de som da estação. O que tem muita graça e surpresa. Não é sempre que se encontra o rosto da divindade humana que nos guia todos os dias. Vai conversando ao telemóvel e nota-se que está com pressa, o jantar ainda não está pronto, o marido não se quer divorciar, o amanhã é já eminente. Está atrasada. Do outro lado da linha o filho espera-a impaciente no portão da escola. Não saias daí – diz-lhe – a mãe não sabe o horário do comboio. Imagino que o filho esteja questionando como é que a mãe não sabe quando é que vem o transporte, logo ela, porque mesmo a seguir a senhora repetiu aos berros A mãe não sabe o horário do comboio, pronto!! antes de desligar. Recomeça a falar sozinha mas agora para toda a estação. A sua voz salta do alto-falante e diz-lhe o horário. Deve ser, assim, nesse estridente e alto volume que nos ouvimos quando pensamos em coisas de que não gostamos. O comboio ainda vai demorar a chegar. A dona da voz dos horários, ao que parece, quer acima de tudo, não se ouvir e, por isso, coloca os auriculares. Mas a bateria do telemóvel acabou. É obrigada a continuar a ouvir-se como se naquela estação estivesse dentro da consciência. Não podia calar a própria voz. Não lhe interessavam outros comboios, outros horários, outros maquinistas, outros passageiros, outras vidas. Estando todos na mesma estação não nos interessa mais ninguém. Olhamos os outros convictos de que apenas nós existimos. A esperança de que haverá nalguma carruagem um lugar reservado com o nosso nome. Mas um lugar reservado devia existir, na estação, para este senhor que já deve ter trabalhado tantas décadas que o próximo comboio devia transportá-lo para as terras da reforma. Olha para o relógio e não vê as horas, antes, vê os comboios que na vida passaram, os amigos que já partiram, os comboios que nunca apanhou, as oportunidades que perdeu, a Rosa era uma mulher bonita, ainda é, mas nunca mais enviuva. Ou seja, será que ele ainda espera esse comboio? O seu ar solitário é o de alguém que uma vez se suicidou de verdade na linha férrea e foi trazido de volta à esta morte em que vive. Tem tão pouca esperança de renascer que já perdeu o desejo de se matar novamente. É ir morrendo. Parece que o tempo lhe deu este relógio para gozar com ele. Deu-lhe estas pessoas para troçar dele. Nunca ninguém tem tempo para estar consigo. E quando lhe vêm a memória percebe que essas pessoas têm de ir a correr para as memórias de outras pessoas, e portanto, não têm tempo para estar com ele agora. Nessa espera do comboio, escapa-lhe o nome do tipo que uma vez o desafiou para um jogo de bilhar, chamava-se              . O relógio que traz ao pulso tem mais vagões de acontecimentos que todos os comboios da Índia enfileirados. Foi o presente do antigo patrão que tinha um restaurante de comida                  , ou era italiana? Não, foi outro patrão quem lhe deu este relógio, no aniversário, ou foi porque não tinha dinheiro para lhe pagar as horas extras. Mentira, foi o             que lhe deu o relógio por causa de uma aposta que fizeram em dezembro de          . As suas memórias aparecem-lhe como os horários suprimidos num dia de greve.
Estamos a espera do comboio, sim. Mas, estamos a espera do quê? Falta-nos                 coisa. Para espanto de todos, até mesmo da senhora que dá voz às chegadas e partidas, o comboio foi cancelado e isto anunciado com a voz da mesma. Aí está uma prova de que aquilo que dizemos pode virar-se contra nós pois ficou muito aborrecida. Com isto, todos se espalham como se tivéssemos estado num mundo escuro que se acendeu. Agora, partilhamos uma chatice comum, táxis comuns, ubers são divididos. Alguns não sabem muito bem como ir sem comboio, mas pela falta de alternativa, procuram nas manchas de sujidade no chão uma revelação de mapa, algum caminho. Enchem-se ainda mais de tédio. Pontapeiam pombos imaginários, os pombos distraem, é por isso que os enxotamos. O mendigo que há pouco passou mas nada recolheu, tem por ora mais sorte, sabe que o ser-humano precisa de tempo e paciência para prestar atenção às vidas que o rodeiam. Quanto a mim, salto para os caminhos de ferro. Não estou sozinho. Vamos a marchar – um grupo de gente. Não, não. Não nos conformamos. Queremos chegar a algum lado. Quanto mais caminhamos percebemos que somos o comboio por que esperámos. Afinal, estávamos à espera de uma decisão própria. Não sendo tão velozes temos tempo para cantar juntos, os hinos do progresso, ao fresco, ladeados por murais de grafitis que os olhos de dentro do comboio não podem ver. Mas, a certa rasura, separo-me do grupo e corto por um matagal. O terreno eleva-se e de lá de cima avisto a cidade e a estação. O comboio chegou. Mas não havia ninguém para o receber. Todos tinham partido. O maquinista salta para a plataforma e fica ele à espera do comboio. Aquele que realmente importa. O comboio das pessoas.

Vandal Vox

 

Vandal Vox faz parte da comunidade literária Band of Poems com Mamã África, Title, Sentence, Krak Bleu e Mr. Vérité. Literatura de luta social. Vandalismo cultural.
A qualquer momento, uma ação clandestina.

Dia Mundial da Saúde Mental: o que falta mudar

Foto de Anthony Tran na Unsplash

 

No dia 10 de outubro assinalou-se o Dia Mundial da Saúde Mental. A preocupação com este assunto e tudo aquilo que implica deveria, em boa verdade, dar-se todos os dias. Os últimos dados estatísticos apontam para que mais de um quinto dos portugueses sofra de uma perturbação psiquiátrica. Todas as pessoas, em determinada altura da vida, estão suscetíveis a sofrer uma perturbação psiquiátrica.

No entanto, sem levar estes dados em conta, muitas pessoas comportam-se como se estivessem imunes a uma doença mental e fossem mil vezes superiores a quem as tem, como se esta fosse um defeito irreparável de fabrico ou, pior ainda, uma escolha. Vêm a pessoa com doença mental como “doido” ou “maluquinho” e o psiquiatra como “médico dos doidos” ou como alguém que “não é médico a sério”. Criminalizam automaticamente qualquer perturbação mental sem conhecerem aprofundadamente nenhuma.

A situação tem de mudar e julgo que não é uma matéria de legislação apenas, mas de sociedade, de abertura a quem é diferente, de avaliação dos ritmos de trabalho (que levam muitas vezes ao stress, exaustão e burnout profissional.

A saúde mental é cada vez mais um tópico de conversa (até porque os números mundiais de suicídios são assustadores) mas temos de passar dos chavões e frases feitas para a ação. Sem um esforço a nível micro, comunitário, nunca se passará para a dimensão macro.

As perturbações psiquiátricas são mais que rótulos ou títulos que encabeçam jornais com a clara intenção de vender mais. Um diagnóstico serve para avaliar uma condição e para o seu tratamento em ambiente próprio.  Não são medida de caráter nem de valor. Pedir ajuda não é sinal de fraqueza, nem todos os episódios psicóticos resultam em assassínios, nem todos os problemas são sem solução. Especialmente no século XXI em que as descobertas no campo das Neurociências, tanto têm contribuído para o campo da Neurologia e da Psiquiatria.

Que não tenhamos medo de nenhuma das palavras acima mencionadas e cuidemos sempre da nossa saúde.

 

Paula Gouveia