Face a um mundo em constante mudança, fomos falar com uma investigadora, poliglota, linguista e fascinada pela comunicação, Ana Sofia Souto, para saber a sua opinião sobre o domínio crescente de jogos versus ferramentas de linguagem, Inteligência Artificial, saúde mental e como encontrar sentido quando tudo parece tão volátil e efémero.
“É essencial promover a consciência linguística”.
1. Ana Sofia, é linguista, especialista em comunicação em língua portuguesa e pesquisadora da linguagem. O que a motivou a escolher este ramo de conhecimento?
O que me motivou a escolher este ramo do conhecimento foi, antes de mais, o meu profundo fascínio pela literatura e pelas línguas. Desde cedo, senti interesse em compreender de que forma a linguagem é capaz de construir sentido(s), emoção e identidade nas mais diversas manifestações discursivas — da literatura à comunicação quotidiana.
A Linguística surgiu, assim, como uma via natural para aprofundar essa curiosidade, permitindo-me analisar de forma mais sistemática e crítica o funcionamento da língua portuguesa e as suas múltiplas dimensões culturais, sociais e expressivas.
“O equilíbrio entre inovação e norma é o que garante a vitalidade e a continuidade da língua portuguesa.”
2. Sentiu preconceito por escolher uma vertente dentro das Humanidades em detrimento do que agora se chama a vertente Científico-Tecnológica?
Sim, senti algum preconceito, sobretudo no início do meu percurso académico. As Humanidades são, quase sempre, vistas como áreas menos “úteis” ou menos ligadas à inovação, o que revela uma visão limitada do que é o conhecimento. No entanto, acredito profundamente que o pensamento crítico, a reflexão sobre a linguagem e a compreensão das dimensões humanas da comunicação são essenciais em qualquer sociedade — inclusive nas áreas científicas e tecnológicas. As Humanidades não se opõem à ciência; complementam-na, oferecendo as ferramentas para pensar o mundo e comunicar o conhecimento de forma ética e significativa.
“É urgente devolver espaço à curiosidade, ao pensamento lento e à criatividade.”
3. Dizem que a língua é um organismo vivo, à semelhança dos seres humanos que a utilizam. Como vê a evolução da língua portuguesa, especialmente entre os millennials (geração y) e a z (os já chamados nativos digitais)?
De facto, a língua é um organismo vivo — e, como tal, transforma-se continuamente ao ritmo das mudanças sociais, culturais e tecnológicas. Entre os millennials e a geração Z, essa evolução é especialmente visível na escrita digital e nas novas formas de comunicação mediadas pela tecnologia.
O português, como qualquer língua, adapta-se aos novos contextos de uso: surgem neologismos, simplificações, empréstimos e novas convenções gráficas. Longe de representar uma “ameaça”, essas mudanças refletem criatividade, rapidez comunicativa e pertença geracional. No entanto, é essencial promover a consciência linguística — isto é, ajudar os falantes a perceber que cada variedade e cada registo têm o seu espaço e função. O equilíbrio entre inovação e norma é o que garante a vitalidade e a continuidade da língua portuguesa.
“Metam as crianças a brincar, a ler e a escrever! — porque é assim que se forma o pensamento crítico, a empatia e a capacidade de comunicar com sentido.”
4. Há a pressão das redes sociais e jogos para a gratificação instantânea. A vontade de escrever e ler para praticar a língua por parte das crianças fica, muitas vezes, na gaveta?
Sim, fica — e isso tem de ser alterado com rapidez. As redes sociais e os jogos digitais habituaram as crianças à gratificação imediata, o que diminui o interesse por atividades que exigem tempo, concentração e imaginação, como a leitura e a escrita.
É urgente devolver espaço à curiosidade, ao pensamento lento e à criatividade. A escola, as famílias e a sociedade precisam de promover práticas que despertem o prazer pela linguagem, pelo texto e pela descoberta.
Metam as crianças a brincar, a ler e a escrever! — porque é assim que se forma o pensamento crítico, a empatia e a capacidade de comunicar com sentido.
“A questão não é rejeitar a tecnologia, mas educar para um uso crítico e ético da mesma.”
5. Com o aprofundamento da Inteligência Artificial, nomeadamente o ChatGPT e Google Gemini, quais são os seus maiores medos e esperanças nesta conjetura?
O meu maior receio é que o aprofundamento da Inteligência Artificial conduza a uma perda gradual do pensamento crítico e da autonomia intelectual. Há um risco real de delegarmos em sistemas automáticos aquilo que nos define como humanos: a capacidade de questionar, interpretar e criar sentido.
No entanto, vejo também grandes possibilidades. Acredito que ferramentas como o ChatGPT ou o Google Gemini podem ser aliadas poderosas da inovação e da produtividade, desde que sejam usadas com consciência e responsabilidade. Quando bem integradas, podem libertar tempo para o pensamento criativo e apoiar processos de aprendizagem e investigação.
Em suma, a questão não é rejeitar a tecnologia, mas educar para um uso crítico e ético da mesma — de modo a que amplie, e não substitua, a nossa capacidade de pensar.
“Falar abertamente sobre saúde mental é, em si mesmo, um ato de prevenção.”
6. Como vê a crise na saúde mental em Portugal? De que forma a comunicação pode aproximar as pessoas e prevenir comportamentos de risco?
A crise de saúde mental em Portugal é grave e exige uma resposta urgente e estruturada. Ainda existe um estigma muito forte em torno do sofrimento psicológico e muitas pessoas continuam a ter medo ou vergonha de pedir ajuda.
O século XXI é, sem dúvida, o século da saúde mental — o momento em que precisamos de compreender que o bem-estar emocional é tão essencial quanto a saúde física. A comunicação tem aqui um papel determinante. Comunicar com empatia, clareza e escuta ativa pode aproximar as pessoas, criar redes de apoio e reduzir o isolamento. É preciso promover uma linguagem que acolha, que normalize a vulnerabilidade e que incentive a procura de ajuda profissional. Falar abertamente sobre saúde mental é, em si mesmo, um ato de prevenção.
“Valorizar a palavra é valorizar a própria condição humana.”
7. Se as ciências ditas puras são úteis na saúde física, a língua e a comunicação ajudam na socialização e na produção de cultura e arte que alimenta a alma. Porque considera não serem valorizadas da mesma maneira?
Acredito que as Humanidades — e, em particular, a língua e a comunicação — continuam a ser subvalorizadas porque os seus efeitos não são imediatos nem facilmente quantificáveis. É mais fácil medir o impacto de uma descoberta científica do que o impacto de uma ideia, de um texto ou de uma conversa que muda mentalidades.
No entanto, são precisamente essas dimensões simbólicas, culturais e afetivas que nos distinguem enquanto seres humanos. A linguagem estrutura o pensamento, a arte e a cultura alimentam a empatia e a imaginação — e sem isso não há progresso verdadeiramente humano.
As ciências cuidam do corpo, mas a linguagem e a comunicação cuidam do sentido: ajudam-nos a compreender o outro, a criar comunidade(s) e a dar significado à existência. Valorizar a palavra é valorizar a própria condição humana.
” É a reflexão crítica sobre o sentido e o impacto da linguagem que realmente transforma sociedades e permite decisões conscientes.”
8. A Ana Sofia fala português a nível nativo, alemão (C1), italiano (C2), inglês (C2) e espanhol (B2). Que conselho daria a alguém que quer começar a aprender uma língua estrangeira? Preocupa-a que com as ferramentas automatizadas, tenhamos falta de vontade e menos capacidade de memorização para o fazer?
O meu conselho é simples: não tenham medo de se abrir ao diferente e ao novo. Aprender uma língua estrangeira é, acima de tudo, aprender sobre nós próprios. Cada língua que aprendemos abre portas dentro de nós e, ao mesmo tempo, permite chegar aos outros de formas novas e surpreendentes.
Se usadas de modo apropriado, as ferramentas automáticas são grandes aliadas. O essencial é manter o contacto vivo com a língua, praticar, errar e, acima de tudo, continuar curiosos.
9. A Ana Sofia é extremamente versátil indo desde a tradução ao pensamento crítico à análise discursiva bem como ao trabalho noutros idiomas. De todos estes componentes qual vê mais potencial de fazer a diferença no futuro?
Apesar de valorizar todas as áreas em que trabalho — da tradução ao multilinguismo — acredito que o componente com maior potencial de fazer diferença no futuro é o pensamento crítico aliado à análise discursiva.
Vivemos numa era de informação abundante e muitas vezes fragmentada. A capacidade de interpretar, avaliar e comunicar de forma clara e responsável será cada vez mais crucial. A tradução e o domínio de vários idiomas são ferramentas poderosas, porque permitem acesso a diferentes culturas e perspectivas, mas é a reflexão crítica sobre o sentido e o impacto da linguagem que realmente transforma sociedades e permite decisões conscientes.
“Num mundo competitivo, é fundamental manter a integridade e a autenticidade, procurando sempre aprender e crescer.”
10. Num país onde se ouve amiúde “os bons vêm sempre ao de cima”, que mensagem gostaria de passar a Ana Sofia aos jovens portugueses que estão a lutar por serem reconhecidos nas respetivas áreas?
Gostaria de dizer aos jovens portugueses que o talento e o esforço são importantes, mas não bastam por si só. Reconhecimento e sucesso exigem persistência, ética, curiosidade e, acima de tudo, paixão pelo que se faz.
Num mundo competitivo, é fundamental manter a integridade e a autenticidade, procurando sempre aprender e crescer, mesmo diante de obstáculos. Os bons podem não surgir imediatamente ao de cima, mas aqueles que investem em conhecimento, reflexão e colaboração constroem bases sólidas para deixar um impacto duradouro.
Paula Cristina Gouveia














