O parto: como fingir que estás calmo enquanto tremes por dentro
Há momentos na vida para os quais achamos que estamos preparados. Como por exemplo, uma entrevista de emprego, um discurso em público, ou um casamento. E depois há o parto — onde tudo isso parece um ensaio para um monólogo num teatro em chamas.
Quando a minha primeira filha estava prestes a nascer, com tudo calendarizado, agendado e certinho no boletim — qual reunião de condomínio com hora marcada — achei que fazia todo o sentido caprichar no look. Afinal, se me visto bem para ir a casamentos de primos afastados, que nem sei bem de que lado da família vêm, por que não me haveria de vestir bem para o nascimento da minha filha? Uma camisa bem passada, calças direitinhas, sapato formal. Um homem digno. Um pai moderno com um toque de classe. E charme…
O problema? O problema começou logo aí.
Desde o momento em que entrei no hospital até à minha primeira filha decidir fazer a sua grande entrada no mundo, passaram mais de vinte e quatro horas. Vinte e quatro. Em numerais: 24.
Em horas de sapato fechado, são duzentos e quarenta mil minutos de sofrimento plantar. A certa altura, aquele sapato, que no início da manhã me fazia parecer um gentleman de catálogo, passou a ser um alçapão térmico de couro. O meu pé, antes orgulhoso, começou a manifestar sinais de revolta. Suava. Inchava. Sussurrava pedidos de asilo a cada passo. Por esse motivo, deixo-vos um concelho: roupa confortável.
Mas pronto, isto foi um problema menor perante o que estaria por vir. Porque, no meio daquilo tudo, o papel principal não é o nosso. Somos figurantes de luxo, homens-bandeja de água, mascotes do apoio emocional. Tentamos parecer úteis. Tentamos ser suporte. Tentamos não desmaiar. E tentamos, acima de tudo, manter um ar calmo — mesmo quando estamos por dentro a fazer uma dança ansiosa de conga existencial, com o cérebro a gritar “O que é que eu faço agora? Será que devia estar a dizer alguma coisa? Será que me calo? Será que trago gelo? Será que devia ir lá fora falecer só um bocadinho em silêncio?”.
Costuma dizer-se que uma mulher só compreende verdadeiramente o sofrimento de um homem constipado, quando está em trabalho de parto. Porque é só ali, entre uma contração e outra, com um bebé a bater com os cotovelos nas paredes internas da realidade, que ela percebe: “Ah… então era isto que ele sentia quando tinha 37,3º de febre e pedia chá com bolachinhas no sofá.”.
A diferença?
Durante a nossa constipação, havia manta, Netflix, um mimo na testa e, às vezes, até um ‘coitadinho’ murmurado com alguma ternura.
No parto?
No parto, não há chá, não há sofá, não há mimo — e definitivamente não há ternura. Há gritos, suores, tensão no ar e um ambiente tão carregado que até o ar condicionado começa a suar.
E tu estás ali. No meio daquilo tudo. A tentar parecer útil, enquanto percebes que és o equivalente humano de uma planta decorativa: simpático de se ver, mas irrelevante na prática.
Tu bem queres ajudar. Dás-lhe a mão. Murmuras palavras de encorajamento que leste no Google às duas da manhã: “Amor, respira… estás a ir muito bem… força…” Mas rapidamente percebes que nada, mesmo nada do que digas tem qualquer efeito. Pior: pode ter o efeito contrário. Um leve “estás quase” pode ser recebido com um olhar que, se fosse uma arma de raios laser, te desintegrava no ato.
E depois, o clímax: a mão. Aquela mão que a tua mulher agarra com a força de mil sofredores ancestrais. Aquele aperto que esmaga ossos, corta a circulação e manda os teus dedos para um lugar onde nunca quiseram ir. Mas tu não soltas. Não podes. Faz parte do ritual. Há um código silencioso: ela grita, tu sorris. Ela aperta, tu aguentas. Ela está a gerar vida… tu, no fundo, só tens de não desmaiar. É pedir assim tanto?
E no meio de tudo isso, tu tremes por dentro. Claro que tremes. És humano. E estás a assistir ao momento mais inacreditável da tua vida: ver alguém que amas a passar por algo avassalador, brutal e, ao mesmo tempo, incrivelmente bonito. Estás ali, de camisa encharcada de nervos, com os sapatos a gritar por liberdade, com as mãos deformadas e o coração a bater mais depressa do que a máquina de CTG.
Mas não mostras nada. És a rocha. O esteio. O pilar. A muralha que treme, mas não cai.
E depois… nasce. E o mundo muda. E tudo o que passou, o cheiro, o suor, a dor, a ansiedade… tudo fica em segundo plano. Porque naquele instante em que ouves o primeiro choro da tua filha, percebes que, sim, foste figurante — mas num filme absolutamente maravilhoso.
E não, não precisei de palmas. Ninguém me deu uma medalha. Nem uma taça. Nem sequer uma daquelas medalhinhas de chocolate com fita dourada que se compram no supermercado.
Mas estive lá. Aguentei.
O meu papel foi claro: estar ali. Respirar. Não cair. E parecer, pelo menos à superfície, um homem com tudo sob controlo. Se houvesse um prémio para a melhor representação num papel secundário, eu estava nomeado. O meu olhar era sereno, a postura atenta, a voz firme (com um leve tremor apenas percetível a cães treinados). Por dentro? Uma tempestade tropical com alertas vermelhos e trovoada emocional em todos os quadrantes.
E sabem o que é mais injusto? É que ninguém fala disto.
Ninguém pergunta ao pai: “Então, como foi para ti o parto?”. Porque, para todos os efeitos, acham que estiveste ali a jogar Candy Crush. Mas não. Estiveste na linha da frente. Sem escudo. Sem armadura.
E por isso, caros leitores, se algum dia vos disserem que os homens não passam por nada no parto… por favor, corrijam essa injustiça histórica.
Porque é verdade que a mãe carrega, sofre, grita, empurra e cria um ser humano com as entranhas.
Mas nós… nós estivemos lá. A suar. A temer. A amar, e a fingir com todas as forças que estávamos calmos, enquanto, por dentro, já tínhamos comprado um bilhete só de ida para o pânico absoluto.
E isso… também conta.
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SOBRE O AUTOR:
Dinis Santos tem 33 anos, vive em Lisboa, onde tenta ser pai, trabalhador e escritor — nem sempre por esta ordem. É licenciado em Gestão de Recursos Humanos, e detém uma Pós-Graduação em Desenvolvimento Organizacional.
Atualmente, ocupa o cargo de HR Business Partner numa das principais empresas do sector alimentar em Portugal, onde aplica as suas competências e conhecimentos para potenciar o desenvolvimento e bem-estar dos colaboradores.
Embora a sua carreira tenha estado sempre ligada à gestão de pessoas, Dinis decidiu explorar uma nova paixão: a escrita. Viajando pelos Alpes | Crónicas Humorísticas de uma Viagem em Família (Vol. I & II) marcaram o seu primeiro trabalho literário, no qual partilha de forma divertida e envolvente as experiências e desafios de viajar com a família.
Este é o seu terceiro livro — e o primeiro que pode causar sorrisos espontâneos em qualquer lado, mesmo no trânsito, ou na fila do supermercado.