Muito se fala de integração nas escolas, mas para um conjunto de pais de crianças com necessidades especiais a inclusão está longe de ser efetiva. Fomos entrevistar Lourenço Santos, representante do movimento com o mesmo nome, que nos fez refletir no muito que ainda deve ser feito para proteger estas crianças e jovens e construir um mundo mais justo e igualitário.
1. Como se originou este movimento que visa na prática uma inclusão funcional, equitativa e operacional de crianças e jovens com necessidades especiais, como previsto na lei?
R: O Movimento por uma Inclusão Efetiva surgiu em 2022, por um conjunto de pais de crianças com necessidades educativas especiais que se deparam diariamente com uma educação que ainda está longe de ser efetivamente inclusiva e que apresenta muitas lacunas na operacionalização do que está preconizado na lei. Por se tratar de uma minoria na sociedade, com todas as suas especificidades, estes pais uniram-se para dar voz às necessidades de todas as crianças, promover a sua inclusão na comunidade escolar e lutar pela efetivação dos seus direitos.
“A amplitude de necessidades destas crianças e jovens é tão grande e diversificada, que o rácio não pode ser definido apenas com base em números”
2. Os dados apontam para 90000 crianças e jovens com necessidades especiais, o que pode ser considerado uma minoria. Mas tendo em vista que cada vida conta, como explicar a falta de assistentes operacionais e de técnicos especializados nas escolas?
R: Efetivamente esta é uma realidade que todos conhecemos e não há nada que justifique a falta de equidade nas escolas e a discriminação que existe.
Se por um lado, o rácio de assistentes operacionais tem que ser rapidamente revisto e o que for estipulado tem que ter em conta não só o número de crianças e jovens com necessidades especiais, mas também as suas especificidades, o seu grau de autonomia e o apoio direto e diário necessário. A amplitude de necessidades destas crianças e jovens é tão grande e diversificada, que o rácio não pode ser definido apenas com base em números. E este aspeto claramente foi negligenciado durante estes anos. Esta situação tem vindo a agravar pelo desgaste físico e emocional destes profissionais, originando períodos de ausência prolongada por doença, e os recursos que já eram reduzidos tornam-se escassos.
Relativamente à falta de técnicos especializados, com a delegação de competências e sem uma ação concertada da comunidade escolar, em todas a sua transversalidade, estamos, por um lado, perante uma gestão pouco eficaz dos recursos existentes e, por outro lado uma sobrecarga de alguns destes técnicos com processos administrativos e/ou burocráticos que não aportam valor direto ao desenvolvimento e apoio das crianças.
É certo que é necessário contratar mais recursos, sejam eles assistentes operacionais ou técnicos especializados, no entanto, uma gestão eficaz dos recursos que existem, formação e acompanhamento no terreno e revisão crítica sobre rácios, processos e procedimentos que envolvem estes profissionais é fundamental.
3. A violência para com este tipo de crianças tem sido noticiada com frequência, bem como discriminação e negligência (1 em 2 crianças). Só integração não basta, é preciso haver planos de inserção que sejam não somente elaborados, mas também cumpridos?
R: Integração é, de facto, a palavra que melhor representa o que se passa nas escolas, quando devia ser inclusão.
Não podemos continuar a permitir que continuem a haver casos de discriminação e negligência, pois estamos a colocar em causa, uma e outra vez, a dignidade destas crianças, a comprometer o futuro das mesmas e a comprometer convenções como a de Salamanca que promove a educação inclusiva, que reconhece que as diferenças humanas são normais, entre outras.
É necessário que efetivamente sejam criados planos de inserção, de forma a que a própria escola disponha de mecanismos de adaptação a cada criança, adaptando a aprendizagem às necessidades de cada criança, planos estes que não podem só ser feitos, têm também que serem cumpridos.
Precisa-se urgentemente de formação, nomeadamente formação cívica, além de formação profissional para todos os intervenientes na educação, para que possamos todos “remar no mesmo sentido”, com o objetivo de incluirmos todos, de respeitarmos a dignidade de todos e de darmos as mesmas oportunidades a todas as crianças.
“Temos muitos testemunhos de situações que são impensáveis nos dias que correm e é perturbador”
4. Qual tem sido a abertura política nacional ao vosso movimento? Sentem que pode haver sinais de mudança?
R: O MIE teve a oportunidade de reunir com a maioria dos partidos políticos e todos têm conhecimento do que se passa nas escolas e das dificuldades que as crianças e jovens com necessidades especiais encontram na comunidade escolar e temos verificado que alguns partidos têm apresentado propostas que vão de encontro à resolução de alguns dos problemas.
No entanto, para que a(s) mudança(s) aconteça(m) é necessário que o Ministério da Educação, conheça a realidade das escolas portuguesas no que diz respeito à inclusão – seja realizado o diagnóstico, de forma objetiva e transparente; faça o devido enquadramento do mesmo no Dec. Lei 54/2018, atual Lei 16/2019 – monitorização da sua implementação nas escolas; e esclareça, retifique ou complemente o que se encontra incompleto ou desenquadrado na legislação. Na realidade, que o Ministério da Educação cumpra o que está estipulado em decreto e que tem sido negligenciado. Não obstante, pela complexidade do próprio Decreto ao partir do pressuposto que o Ministério da Educação, o Instituto da Segurança Social e o Ministério da Saúde trabalham de forma cooperante, cooperativa e ágil, esta relação tem de ser reavaliada à luz da realidade em Portugal.
Ao Governo exigimos que a legislação seja cumprida, tal como nos exigem a nós cidadãos. É da responsabilidade de todos os partidos, em específico e no geral, assegurar que a Educação Inclusiva é mais do que um chavão é uma realidade nas nossas escolas.
5 . Entretanto receberam muitas queixas de maus-tratos e bullying, casos que devem ser sempre denunciados, e que vão levar ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em Estrasburgo. Quais são as vossas expectativas ao tomarem esta ação?
R: Esta decisão de levarmos um conjunto de testemunhos ao Tribunal Europeu, resultou do facto de termos recorrido a todas as entidades com responsabilidade, existentes em Portugal, e vermos que em todas elas nunca foi dada muita importância a este tema. É o Estado que tem a responsabilidade de assegurar um dos pilares da constituição que é a Educação. É este mesmo Estado que tem a responsabilidade de fazer com que a Educação seja equitativa, e seja acessível a todas as crianças independente das suas características.
Temos muitos testemunhos de situações que são impensáveis nos dias que correm e é perturbador que, nomeadamente, os políticos que têm responsabilidade e capacidade para alterar o que está mal não o façam e preocupa-nos que não o façam por falta de vontade. Este tema, infelizmente, não está no topo da agenda, nem dos políticos, nem da comunicação social.
6. Para as mães e pais que têm filhos agressores, que palavras dirigiriam? Como educar para a diferença, para a empatia e para a humanização?
R: Educar é algo complexo e nada está certo nem errado, no entanto aquilo que consideramos importante são os valores como a empatia e o respeito, e será importante que todos os Pais ensinem pelo exemplo, devemos respeitar todos da mesma forma, porque todos nós somos diferentes, tenhamos ou não efetivas diferenças. Cada situação tem características e variáveis próprias e, como tal, temos que olhar para as crianças que sofrem de bullying mas também para os agressores.
A escola, e a sociedade, tem que compreender o enquadramento das situações, seja o que despoleta os comportamentos e as reações agressivas como também ter estratégias e mecanismos que evitem a ocorrência desses mesmos atos, e a ocorrerem, terem definidos planos de ação/intervenção pós-crise.
7. Fala-se de ensino com acessibilidade e flexibilidade, mas a verdade é que este ainda é muito formatado e em série. Quando se poderá valorizar mais as capacidades únicas que cada criança tem e menos o que por norma deverá assimilar?
R: A igualdade e a equidade de oportunidades para estas crianças e jovens e a valorização das suas capacidades em detrimento do que é normativo só será possível com a alteração de mentalidades.
Desde a mentalidade dos profissionais da educação, com ações de sensibilização e formação, avaliações das suas apetências ao nível das soft-skills para estarem e respeitarem todas as crianças, como a iniciativas que devolvam e fomentem os princípios do respeito e da empatia para com quem nos rodeia direcionadas às várias faixas etárias e enquadramentos profissionais e sociais.
A par da monitorização da legislação sobre a Educação Inclusiva, o desenvolvimento de iniciativas que promovam a alteração de mentalidades, são as duas áreas de intervenção prioritárias para um ensino inclusivo de qualidade.
8. Segundo a Convenção dos Direitos da Criança devem ser removidos obstáculos para que as crianças com qualquer tipo de deficiência possam ter a melhor vida possível em sociedade, ser independentes a participar ativamente na comunidade. É utópico pensar que isso possa ser uma realidade para a maioria ou todas as crianças com necessidades educativas especiais?
R: Numa sociedade que se diz desenvolvida, não deveria haver necessidade sequer, de ratificar uma convenção para garantir que as crianças com qualquer tipo de deficiência possam ter a melhor vida possível em sociedade e que tenham a oportunidade de ser um cidadão ativo, como qualquer outro.
Para nós, enquanto Movimento e enquanto Pais, o que seria esperado era haver uma efetiva inclusão. Uma sociedade onde todas as crianças, independentemente da sua condição, se sentissem verdadeiramente integradas, sem qualquer reserva. Todas as crianças devem ter um igual nível de oportunidades para que possam viver em sociedade, em toda a sua plenitude, e serem os adultos mais ativos e autónomos possíveis e esse processo começa na Escola.
9. Segundo a mesma Convenção, a criança tem direito à segurança e proteção contra a violência e negligência. Quando vemos estes direitos serem diariamente desrespeitados seja no âmbito privado ou público, que ações podemos tomar enquanto cidadãos para tentar combater este tipo de situações?
R: Enquanto cidadãos, o que podemos e devemos fazer é denunciar, casos de negligência, discriminação e violência contra crianças, tenham ou não algum tipo de deficiência são perturbadores e intoleráveis. Quando estes deveres não são respeitados estamos a pôr em causa a dignidade das crianças e estamos a comprometer o seu normal desenvolvimento e o seu futuro. Estes atos, repetidos uma e outra vez, estão a comprometer também a saúde mental de todas estas crianças e dos seus pais.
A sociedade não pode nem deve assistir impávida a todas estas situações e não reagir, que tipo de pessoas somos nós se continuarmos a permitir este tipo de discriminação, de indiferença perante tudo o que acontece? Há uma falta de empatia e de sensibilização por parte de grande parte da sociedade. Está na hora de se começarem a mudar mentalidades.
10. A união faz a força e têm-se organizado para expandir e divulgar cada vez mais as causas que defendem. Quais são os vossos objetivos mais imediatos e a longo prazo
R: Os objetivos do MIE no imediato é trazer para a ordem do dia a Não Inclusão que existe nas Escolas e pressionar o Ministério da Educação e o Governo para a urgência na monitorização da legislação que está subjacente, para que possam ser tomadas medidas corretivas e/ou complementares, com o devido enquadramento legal, que permitam melhorar a resposta educativa das crianças e jovens com necessidades especiais.
Ao longo prazo, pretendemos promover iniciativas que fomentem a alteração de mentalidades da nossa sociedade e que a inclusão passe a ser uma preocupação de todos os cidadãos e não só de quem tem de lidar diariamente com crianças, jovens e adultos com necessidades especiais.
Paula Cristina Gouveia