Entrevista a Mariana Laginha: Uma personalidade borderline

 

O título deste artigo alude à página de Instagram de Mariana Laginha, uma jovem artista plástica que foi diagnosticada com Perturbação de Personalidade Borderline (PPB). Mariana assumiu o controlo da sua narrativa e fundou um site onde outras pessoas com a mesma condição podem partilhar a sua história (https://www.livingafterborderline.com/).

Fomos falar com ela sobre como lida no dia-a-dia com esta perturbação, os preconceitos da população em geral, estratégias de autorregulação emocional e a importância de ter uma comunidade à sua volta.

 

1. Podemos considerar alguém com perturbação de personalidade borderline como uma tela em branco que se torna de identidade camaleónica para se adaptar a um novo grupo de amigos, relacionamento, trabalho, etc.?

 

Apenas posso falar por mim, e sim, no início, a partir da pré-adolescência, frequentemente me sentia alienada, isolada, incompreendida e, ao mesmo tempo, com muita resistência ao conflito e confronto, tornando-me uma pessoa que procura agradar aos outros, independentemente de quem sejam. Isso manifesta-se, sim, em comportamentos camaleónicos, dependendo de com quem estamos ou com quem passamos mais tempo. Por exemplo, sendo artista plástica – pintora, e olhando para trás, reparei que os meus trabalhos artísticos se alteraram no conceito, na forma, na escala, na técnica, consoante o parceiro com quem estivesse na altura.

Quanto a saltar de emprego em emprego, e como quem diz emprego, diz amizades, hobbies, interesses, opiniões, estará mais relacionado com a junção da impulsividade, fraca autoimagem e dificuldade em tomar decisões/compromissos.

 

“É importante cultivar a paciência e tolerância connosco mesmos”

 

2. O médico e escritor Gabor Maté designa como fantasmas famintos as raízes das dependências, sejam elas alimentares, de álcool ou drogas. Há uma sensação de vazio, de profunda lacuna. Como lidas com os teus gatilhos emocionais e impedes que se transformem em crises?

 

Confirmo que tenho uma personalidade aditiva, e nem sempre a tenho com atividades que me beneficiem. É bastante árduo o trabalho interior para enfrentar e preencher esse vazio, nós próprios. Após vários anos em terapia, começo a ter maior consciência sobre que pensamentos me podem dar gatilho, e, assim que me apercebo desse momento antes de uma crise, uso, como âncora, a música, as longas caminhadas, a escrita, a dança, socializar com pessoas seguras, empáticas, que me compreendem e acolhem, passar mais tempo na natureza.

Por outro lado, há vezes em que, por muito que nos esforcemos por sair do lodo, com todas estas técnicas e outras mais de autorregulação, é importante cultivar a paciência e tolerância connosco mesmos. Ver este momento difícil, diria até insuportável, como uma tempestade noturna no mar alto, que vai passar. Ter a força e o autocuidado para passar pela dificuldade até dias mais estáveis e funcionais.

 

3. Ao ler a tua história pessoal em que tiveste múltiplos estudos, trabalhos e interesses dirias que foste funcional até, de certa forma, em 2018, deixares de ser? Foi algo faseado enfrentares os teus demónios ou sentes que aconteceu tudo ao mesmo tempo?

 Diria que, desde muito cedo, aprendi a esconder a minha sombra e os meus demónios, e a aprender a andar sozinha emocionalmente. Desde os 8/9 anos de idade que tive pensamentos perturbadores com a morte, e inquietude sobre quem sou.

Resultou numa fuga constante, de estudos diferentes, empregos, interesses, hobbies, novas amizades a cada ano, países/contextos onde viver.

2018 foi apenas uma gota de água num poço já há muito a ser cheio. Apesar de me auto-mutilar há anos, nesse ano em particular, tentei a primeira tentativa suicida. Tenho uma escassa memória desse momento e dos tempos que se seguiram. Mas foi nesse momento (provavelmente o primeiro momento) em que familiares e alguns amigos se deram conta de que algo não estava bem comigo. Foi nesse ano que comecei a ir a diferentes psiquiatras, terapeutas e medicações.

 

4. O estigma ainda é uma realidade no que toca a saúde mental. Quais foram os preconceitos, os estereótipos ou ideais mais ridículas que já ouviste dizer sobre a perturbação de personalidade borderline?

 Já ouvi muitos comentários preconceituosos acerca de saúde mental em geral, especialmente no que toca à perturbação de personalidade narcisista, bipolaridade, autismo, por aí fora. Mas, no que toca à perturbação de personalidade borderline, o que mais tenho lido nas redes sociais, ou ouvido de doentes, testemunhos, a comentários de profissionais de saúde, tem sido que as pessoas que sofrem com PPB são manipuladoras, desonestas, de mau carácter e que não é possível terem relações amorosas e de amizade duradouras e estáveis.

 

“Esforço-me por utilizar a lógica para compreender o lado emocional e vice-versa”

 

5. Descobrir a nossa verdadeira identidade, para além das expetativas e de tentar agradar aos outros é sempre um desafio, mas no caso dos borderlines é ainda mais marcado. Em que etapa desta jornada te sentes e em que medida a aprovação dos outros é ainda essencial à tua autoperceção?

 Bem, esta pergunta tem uma resposta de uma moeda de dois lados. Se num dia, com muita terapia e trabalho interior, com a idade e experiência, dou menos importância ao que os outros pensam e consigo ser eu mesma em diferentes cenários, falar sem ter de pensar três vezes antes de me expressar, e sinto-me confortável no meu corpo. Por outro lado, num outro dia, dependendo de com quem estou, a dinâmica de grupo, o ambiente e contexto, e a narrativa interna que tem estado a acontecer anteriormente, posso sentir-me tensa, silenciosa, constrangedora, congelada, inquieta, desconfortável.

 

6. Quando se trata de autorregulação emocional e apaziguar a própria mente, quais os cuidados que tens para preservares a tua integridade corporal e paz de espírito?

 Primeiro, dou-me espaço e um lugar seguro e confortável onde possa estar como estou no momento. Segundo, esforço-me por utilizar a lógica para compreender o lado emocional e vice-versa, como um diálogo interno entre desconhecidos com opiniões muito diferentes entre si. É importante usar técnicas de respiração e relaxamento, para conseguir ter o distanciamento e frieza suficientes para poder observar a realidade e confirmar se o que está a acontecer é real ou imaginado/mal interpretado. Isto estende-se para o que se passa no exterior tanto como no interior.

 

7. A perturbação borderline pode ser confundida com a perturbação bipolar, mas as mudanças de humor costumam ser mais rápidas, voláteis e pronunciadas. No entanto, ambas as doenças podem ser vistas de forma pejorativa como viver no limite ou ter dois lados, respetivamente. De que forma te ensinaram a distinguir as duas e sentes na pele desinformação por parte do público em geral?

 Sendo a perturbação bipolar bastante mais conhecida, apesar de não ser conhecida a fundo, é frequente confundirem a PPB com a PB. Tenho ouvido, na vida pessoal e profissional, bastantes comentários preconceituosos e pejorativos em relação a qualquer pessoa que não aja em conformidade com os seus padrões normais de comportamento. Ou seja, é habitual a população etiquetar qualquer pessoa com uma doença mental, e usar isso como insulto, cuja camada é ainda mais obscura e violenta.

O que aprendi é que a PPB e a PB têm bastantes sintomas diferentes, mas têm alguma da sintomatologia em comum. É possível ver as diferenças no Manual DSM-5. [Manual de Diagnóstico e Estatística de Perturbações Mentais].

 

“Decidi criar um site com toda essa informação, incluindo a minha própria história”.

 

8. O afeto e apoio das pessoas com condição semelhante é muito importante e tu fundaste uma página (https://www.livingafterborderline.com/) que é uma autêntica comunidade. Podes descrever um pouco o projeto?

 O projeto começou como uma necessidade de aprender mais e obter mais conhecimento sobre a perturbação, criar uma comunidade de pessoas como eu, resultando num menor sentimento de solidão e incompreensão por parte dos outros. Aí comecei uma conta de Instagram para contar a minha história, acabando por conhecer pessoas incríveis, na mesma luta que eu, cada uma na sua fase do caminho, e, para não perder as histórias de testemunhas e recursos bibliográficos, decidi criar um site com toda essa informação, incluindo a minha própria história.

A partir desta comunidade tive oportunidade de entrar em vários grupos de apoio para borderline e saúde mental em geral. Conheci pessoas com a minha perturbação pessoalmente pela primeira vez há poucos anos e são relações completamente diferentes, porque o que normalmente é tabu, para nós é o dia-a-dia, e torna-se possível conversar ou brincar sobre assuntos sérios e profundos de forma bastante natural.

 

“Espanto-me positiva ou negativamente muito facilmente com coisas aparentemente vulgares”

 

9. O teu site tem mensagens muito inspiradoras como “Um mau dia não é uma má vida”, “O que não podes fazer é desistir” e “A flor de lótus só desabrocha em águas lamacentas”. Que frases/métodos te ajudaram mais no processo de não só aceitar o diagnóstico, mas continuar em frente?

 

Uma frase que se colou à minha memória no segundo ano de Universidade, num pograma Erasmus nos Países Baixos, e até hoje me lembro frequentemente, é de uma professora de Pintura: “Erra. Erra outra vez. Erra melhor”. Ou seja, tenta, e vais errar, mas tenta de novo, e irás aprender algo novo e errarás melhor. E assim sucessivamente, a vida toda.

 

10. Por vezes as pessoas são reduzidas à sua doença ou comorbidades, mas ninguém é uma só coisa. O que gostavas que, para encerrar esta entrevista, soubessem sobre ti?

 

 Não sei bem. Talvez diria que sinto tudo muito intensamente, conseguindo ficar inquieta com o barulho de talheres num restaurante, a um cheiro nos transportes que me deixa enjoada e enclausurada, uma luz intensa refletida ou mesmo do próprio dia.

Sinto que estou em remissão de sintomas, o que significa que me sinto muito mais estável, funcional e grata do que há sete anos atrás e que os períodos calmos são mais duradouros do que os picos altos e baixos.

Adoro caminhar na Natureza, fotografar, dançar a música eletrónica com amigos, ou dançar a qualquer tipo e música sozinha, desenhar e pintar, sou muito observadora e espanto-me positiva ou negativamente muito facilmente com coisas aparentemente vulgares.

 

Paula Cristina Gouveia