Entrevista a Márcia Arend: “Precisamos ensinar para as próximas gerações que ser diferente não é um problema”

 

Márcia Arend é pedagoga de formação com diversas especializações como: Psicopedagogia, Psicomotricidade,

Saúde Mental e Atenção Psicossocial, Neurologia Clinica e Intensiva, Neuropsicopedagogia, Intervenção ABA em autismo e Deficiência Intelectual. Mestrado em Pediatria e Saúde da Criança Doutoramento em Educação em Ciência: Química da vida e saúde. Para além disso, também é Escritora Infantil e Palestrante.

Fomos falar com ela a propósito do seu último livro, de como se aprende e como fomentar a inclusão.

 

1. Márcia, é psicopedagoga e psicomotricista, mestre em Pediatria e Doutora em Educação em Ciência. No debate como se faz a aprendizagem, se pela emoção e o coração ou pela parte da biologia e genética, como se posiciona?

A aprendizagem é um processo bem complexo que envolve os fatores biológicos e os fatores emocionais. É difícil querer separá-los, na minha opinião.

Do ponto de vista biológico e genético, sabemos que nascemos com predisposições neurológicas e cognitivas determinadas, em cada um de nós. Porém, muito escutamos e lemos que o cérebro possui a neuroplasticidade incrível, ou seja, ele é capaz de modificar conforme for estimulado, através das experiências vividas.

No entanto, temos a emoção com uma função essencial na aprendizagem. Aprendemos melhor quando estamos motivados, seguros, acolhidos e conectados afetivamente com aquilo que vivenciamos.

Com meu olhar profissional a aprendizagem acontece melhor quando integra a razão, emoção e a parte biológica. Acredito muito que ambiente afetivo, as experiências emocionais, as oportunidades se entrelaçam com a estrutura neurológica de cada pessoa.

 

2.  Sabemos que a aprendizagem se pode fazer de diferentes formas como ser visual, auditiva, basear-se na leitura/escrita ou cinestésica (tato). Considera que as escolas já estão a despertar para esta diversidade, de que cada aluno é único e especial, ou continuam muito focadas com os antigos modelos padronizados?

Esses movimentos sobre diferentes estilos de aprendizagens estão em constante crescimento, mas ainda vemos muitas escolas presas a modelos tradicionais e padronizados, que valorizam a prova escrita.

Felizmente, algumas escolas estão despertando para esses movimentos, dando uma atenção para a importância da personalização da aprendizagem e da valorização das múltiplas formas de aprender.

Ainda é um desafio real tornar essa aprendizagem uma prática constante no quotidiano escolar. Isso exige muitas mudanças, apoio à formação dos professores, e um olhar como ser único para o aluno, com interesses, potencialidades e formas específicas de se conectar com o conhecimento.

 

3. Os pais muitas vezes sentem-se pressionados a que as suas crianças compitam da mesma maneira que vemos nesta sociedade de roda de hamster, de mostrar trabalho, de mostrar rendimento. Dito isto, como resolver possíveis atrasos na aquisição cognitiva, social, emocional e de linguagem? A intervenção precoce e estimulação conseguem ser uma boa resposta para estes problemas?

A intervenção precoce e a estimulação adequada são fundamentais para lidar com possíveis atrasos no desenvolvimento cognitivo, social, emocional e de linguagem. No momento que é identificado que uma criança não está atingindo os marcos do desenvolvimento esperados para a sua faixa etária, entra-se com avaliações necessárias e o suporte através de estratégias lúdicas, interativas e afetivas.

A família tem um papel central nesse processo: quanto mais envolvida e orientada estiver, melhores serão os resultados.

Estímulos adequados fazem toda a diferença. É possível promover avanços significativos quando há acolhimento, acompanhamento profissional qualificado e um ambiente que favorece o brincar.

“O lúdico não é o contrário da aprendizagem!”

 

4. Sobre brincar, a Márcia diz que é desenvolvimento na prática, dotar as crianças de habilidades, fortalecer vínculos e prepará-las para o mundo. Porque vemos o brincar como um mero passatempo e não como algo que para além de lúdico, pode ser mais um arsenal de ferramentas que a criança tem para se descobrir a ela mesma e àquilo que gosta?

Por muito tempo, o aprendizado foi associado apenas ao que é formal, estruturado e produtivo. Eu sempre digo, ” brincar é desenvolvimento.” Quando a criança brinca, ela experimenta, cria, aprende limites, se expressa e se comunica. É nesse momento lúdico que surgem habilidades essenciais para a vida, como: atenção, empatia, autorregulação, vínculos afetivos, memória, melhora autoestima e ajuda a criança a se descobrir.

Se entendêssemos o brincar como esse verdadeiro arsenal de ferramentas para o desenvolvimento, daríamos muito mais valor a ele, em casa, na escola e na sociedade.

O lúdico não é o contrário da aprendizagem!

 

5. A discalculia afeta a capacidade de aquisição e realização de operações matemáticas. Encontra alguma relação de base entre dificuldade com números e a de letras- dislexia? E por último, o que nos podem ensinar outras condições como a síndrome de Down sobre resiliência, alegria e empatia?

Há uma relação entre discalculia e dislexia, pois ambas fazem parte dos Transtornos Específicos de Aprendizagem. A discalculia apresenta prejuízos na matemática: senso numérico, memorização de fatos aritméticos, precisão e fluência de cálculos e no raciocínio. Enquanto  a dislexia apresenta prejuízos na escrita e na leitura. Ambas podem envolver dificuldades na memória de trabalho, atenção e no processamento de informações diferentes. Ou seja, elas podem impactar na vida acadêmica e social da criança.

Importante estar sempre lembrando que nenhuma delas diminuiu o potencial da criança, é uma indicação que ela aprende de forma diferente e precisa de estratégias adequadas, apoio e compreensão.

Quando falo em Síndrome de Down me emociono porque é um convite a aprender muito mais do que conteúdos acadêmicos. São crianças que nos ensinam sobre resiliência, leveza, espontaneidade e empatia.  Mostram que inteligência, emoção e alegria são ferramentas poderosas de inclusão e transformação. Necessitam apoio certo, para poderem se desenvolver, aprender e são as maiores inspirações que tenho, passam uma força de viver e uma sensibilidade grandiosas.

 

6. Sabemos que os distúrbios alimentares nas crianças se revestem de alguma complexidade, no que revela a adoção e rejeição de certos ingredientes. Qual é a contribuição da fonoaudiologia neste quesito e qual é a conexão entre o corpo que se movimenta, interage e percebe o mundo?

Não é a minha área de conhecimento. Mas, acredito que  fonoaudiologia entra com grande contribuição na avaliação e intervenção das funções orais como: sucção, mastigação, deglutição e respiração, além de investigar possíveis questões sensoriais que impactam a alimentação e na estimulação da linguagem, entre outras.

O corpo que se movimenta, também interage e se interage percebe o mundo, está em constante  aprendizado. Quando a criança se movimenta, explora, brinca e se expressa, ela também está organizando sua percepção corporal, incluindo a oralidade. A alimentação é, um ato que envolve corpo, mente e afeto.  Por isso, a importância de uma equipe interdisciplinar é essencial para abordar essas questões de forma completa e respeitosa.

 

“Precisamos ensinar para as próximas gerações que ser diferente não é um problema”

 

7. Publicou recentemente o livro infantojuvenil “João assim assim- As aventuras de um menino para lá de especial”, sobre o autismo. É preciso desmistificar e eliminar preconceitos relacionados com esta condição neurológica, apresentando uma vida que pode ter qualidade e fluidez à mesma?

 

Sim, é urgente desmistificar o autismo e romper com os preconceitos que ainda cercam essa condição neurológica. Foi justamente com esse propósito que publiquei o livro “João Assim e Assim. As aventuras de um menino pra lá de especial”. A obra mostra, de forma lúdica e acessível, que as crianças autistas não só aprendem e se desenvolvem, como vivem histórias incríveis, cheias de emoção, desafios, superação e encantamentos.

O autismo não deve ser visto como uma limitação absoluta, mas como uma forma diferente de perceber e interagir com o mundo. Mostrar isso na literatura, especialmente para o público infantil e juvenil, é uma forma poderosa de promover empatia e inclusão. Precisamos ensinar para as próximas gerações que ser diferente não é um problema.

 

8. Quais foram os seus principais objetivos ao escrever esta obra e de maneira os pretende concretizar? É um trabalho em progresso?

 

Ao escrever o livro, meus principais objetivos foram dar visibilidade ao autismo, promover a empatia desde a infância e mostrar que toda a criança, mesmo com suas particularidades, pode aprender, sonhar e viver grandes aventuras.

Quis contar uma história inspirada na realidade, em uma criança que atendi, em famílias que acompanho, e em experiências que me marcaram profundamente como psicopedagoga e psicomotricista. João representa muitas crianças que pensam e sentem o mundo de um jeito diferente, mas que muitas vezes não são compreendidas ou acolhidas em sua essência.

Pretendo concretizar esses objetivos não apenas com a leitura do livro, mas com ações educativas: rodas de conversas, formações/capacitações nas escolas, projeto Neuro Bate-papo e palestras. O livro é um ponto de partida e sim, é um trabalho em progresso. A cada partilha com leitores, surgem novos caminhos, ideias e conexões. A obra segue viva, porque o compromisso coma inclusão é continuo.

 

9. Quando falamos de inclusão e de necessidade especiais, falamos de formação e de capacitação de profissionais. O que tem a dizer sobre este assunto?

A formação vai além do conhecimento técnico. Há a necessidade do desenvolvimento de um olhar empático, ético e humanizado, que compreenda as singularidades de cada pessoa. Muitos profissionais ainda saem da graduação sem preparo necessário para lidar com a diversidade presente nas escolas, clínicas e empresas. Por isso, a capacitação contínua é indispensável.

Investir em formação é investir na qualidade da inclusão!

Quando o profissional está preparado, a inclusão deixa de ser um desafio e passa a ser uma realidade possível e transformadora para todos os envolvidos.

 

10. É claramente apaixonada pela aprendizagem e pela educação. Em síntese, como foi a sua história e percurso profissional? Considera que os dons e talentos se identificam desde tenra idade ou temos uma vida inteira para os encontrar? Por último, o que fazer para que haja no aprender e não só, uma verdadeira ponte entre o corpo e a mente e possamos viver o nosso propósito com amor e verdade?

 

Sou completamente apaixonada pela inclusão, apaixonada pela minha profissão, apaixonada pelo que faço todos os dias. Minha trajetória começou cedo, cercada de crianças, livros, estudos, pesquisas e uma curiosidade incansável sobre o comportamento das crianças atípicas. Aos poucos, fui entendendo que minha missão estava em ajudar os outros a encontrarem seus caminhos de desenvolvimento, especialmente aquelas que, por alguma razão, não se encaixavam nos moldes tradicionais.

Estudei e estudo muito, pesquisei e pesquiso ainda com publicações em revistas científicas, atuo em clínica particular, do qual sou proprietária. Tornei-me uma profissional capacitada para lidar com crianças atípicas, na área psicopedagógica e psicomotora. Mas o que realmente moldou meu percurso foi o contato direto com crianças e famílias reais, com suas dores, desafios, vitórias e singularidades.

Sobre dons e talentos, acredito que alguns sinais aparecem na infância, mas acredito que ao longo da vida ainda podemos nos (re)descobrir. O mais bonito é que nunca é tarde para novas descobertas.

A educação precisa integrar o sentir, o pensar , o aprender com afeto, com o corpo, com o movimento, com a experiência. Quando isso tudo acontece, iremos viver com mais verdade e amor ao propósito que nos guia.

A verdadeira ponte entre corpo e mente é possível a partir da escuta, do acolhimento  e do respeito!

 

 

Paula Cristina Gouveia