Autora da página de Facebook e Instagram “Emilie mas não pareces autista”, atualmente com 10,1 mil seguidores, Emilie dedica-se a divulgar o autismo, condição que a acomete a ela e a um dos seus filhos. Nesta longa entrevista falamos de estereótipos, medos e esperanças para como se possa vir a encarar o autismo a nível pessoal e profissional.
“Depois do diagnóstico, obtive imediatamente alívio, foi libertador, tirou-me culpa”
1_ Quando falamos de autismo, falamos de uma perturbação de desenvolvimento neurológico e não de uma doença mental. Sente que há ignorância por parte do público em geral e a tendência a meter tudo na mesma caixa?
Sinto imensa ignorância a nível do autismo, muito dessa ignorância vem da comunicação social e dos casos que passam na televisão, a tentar forçar o drama de qualquer perturbação e deixando até, passar informações falsas pelos convidados, pessoas não informadas elas próprias sobre as condições dos filhos. E depois torna-se um círculo vicioso, desinformação, passada por quem deveria perceber do assunto, em programas muito vistos pela população que consome muitos conteúdos deste género, com drama, soluções milagrosas ofertas por clínicas, mais drama …Isso vende. Depois há também a imagem da perturbação mental devido aos filmes onde todos os autistas são génios que fazem cálculos mentais impossíveis com vários dígitos, mas são incapazes de olhar nos olhos e têm tiques acentuados. Não há meio termo.
2_ A Emilie tem atualmente 40 anos e dois filhos (um neurotípico e outro autista) mas só foi diagnosticada com autismo tardiamente, aos 36 anos. Sabemos que tanto na Psiquiatria como na Neurologia há conjuntos de sintomas que se sobrepõem. Como justifica este atraso em lhe darem o diagnóstico correto? Sente que foi privada de alguma forma?
O atraso foi provocado por ser mulher. O autismo foi estudado em meninos. Nas meninas, o autismo manifesta-se de forma completamente diferente, a vários níveis e conseguimos por norma imediatamente e de forma inata imitar o socialmente aceitável ( masking) para sobreviver. Não tive profissionais competentes. Após o diagnóstico do meu filho, e numa tentativa de perceber melhor o que era o autismo afinal, encontrei um pequeno parágrafo sobre autismo em mulheres…e revi-me imediatamente. Pesquisei mais, fiz testes em casa, que não deixavam margem para dúvida, no entanto queria a validação de um profissional. Encontrei uma psiquiatra que não hesitou no diagnóstico, refiz testes, e não houve margem para dúvidas, mas foi a primeira vez que uma psiquiatra me colocou as perguntas corretas. Há perguntas que inúmeros psiquiatras nunca me colocaram na vida. Depois do diagnóstico, obtive imediatamente alívio, foi libertador, tirou-me culpa. Sou assim por um motivo, não sou má pessoa. Tenho efetivamente uma diferença neuro biológica que me faz ver, ouvir, sentir e percecionar o mundo de forma diferente. Depois de alguns meses veio uma revolta enorme: “Porque não me diagnosticaram antes? Qual era a dúvida?” Tentei então canalizar está revolta para a escrita e passei a ter a página no Facebook e Instagram “Emilie mas não pareces autista”
3_ No mundo laboral de hoje vemos muitas vezes anúncios de empregos com requisitos como “resistência ao stress” e “capacidade de trabalhar sob pressão”. Pela sua experiência e dado que os autistas têm tendência à sobrecarga sensorial, considera isso um cocktail perfeito para o burnout profissional?
Absolutamente. Não há lugar para a neurodivergência. O que é pena porque somos trabalhadores muito leais, muito seguidores de regras, normas, protocolos, algoritmos. Estes anúncios deveriam ser proibidos até para neurotípicos, essas expressões usadas: “resistência á pressão, ao stress,” são igualmente de um abuso infundado do ser humano, em troca de um ordenado mínimo muitas vezes.
4_ Como poderíamos adaptar melhor o mundo do trabalho às pessoas autistas? O que sente a Emilie que consegue gerir bem laboralmente e qual é o ponto de saturação em que tudo se torna demasiado?
Às vezes basta teletrabalho. Simples. Investimento para a empresa:” um computador”. Se realmente for necessário um trabalho presencial, não fazer uso de “Open spaces ” muito na moda, que dão a sensação de abertura para o diálogo, e que nos obrigam a estar mais concentrados em controlar estereotipias (movimentos repetitivos de autorregulação), e só isso é uma pressão enorme. Substituir antes por um escritório fechado, sem janelas, com uma porta, possibilidade de regular a luz, o som (se houver som para todos), computador, secretária, cadeira, permitir algo que nos dê possibilidade de trabalhar no chão, como almofadas, tapetes, etc
5_ Nas escolas há crianças com doenças mentais e autismo que os pais preferem não serem sinalizadas como tal, com medo de represálias, para as protegerem ou proporcionarem um crescimento dito “normal”. A Emilie optou por ser uma voz pública da Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) sua e do seu filho. Sente que quebrar tabus é o melhor caminho de ir em frente?
Sim. Temos de dar a cara, eu dou a cara na minha página, tenho de ser coerente com aquilo que defendo. Ao partilhar sobre autismo, na primeira pessoa, às vezes sobre o meu filho mas de forma mais discreta, para não o expor diretamente porque ele tem o direito à sua privacidade. Vou de headphones e óculos de sol para o centro comercial, e o meu filho se quiser usar usa também. Não posso dizer-lhe podes ser quem és, não te escondas, e eu agir de forma diferente. Não seria lógico. Aqui em casa fala- se de autismo, como se fala de um como correu um dia qualquer. Tentamos não patologizar o assunto, não “evitar” a palavra. Costumo referir ao meu filho, embora pequeno, que sim ele é autista, eu sou autista, e sim que vida vai ser um pouco mais complicada, mas que estarei ao lado dele para o guiar e defender. Já dou palestras sobre Autismo na primeira pessoa e o que é ser mãe de autista, na escola dele. Houve abertura da direção do agrupamento para isso, e avancei sem medos de mostrar, as várias faces do autismo.
6_ O seu filho sofreu um choque anafilático devido a uma alergia severa à proteína do leite e a Emilie teve de o injetar de emergência com adrenalina, uma situação certamente muito traumática. As ementas escolares só lhe foram fornecidas depois de muita insistência. Sente que na justiça somos apenas mais um caso ou mais um número até ser acionada a Comunicação Social para dar voz às lutas e preocupações?
Nalgumas situações sim, falo do ano desse choque anafilático, de 487 emails num ano letivo, e emails não de 3 linhas mas romances inteiros. Tive de batalhar por aquilo que está na lei, escalar para as entidades competentes e fiscalizadoras. Hoje temos uma relação de mútuo respeito com toda a direção escolar, porque perceberam que não me deixo calcar, que sei os meus direitos, que procuro o diálogo, e que tento resolver entre adultos antes de escalar a quem fiscaliza. As ementas foi uma situação com a Câmara Municipal diretamente, que estranhamente apesar de eu ter recorrido às entidades todas, ter feito queixa no Ministério Público (que mantenho para ir a julgamento espero eu, por crime de ofensa à integridade física grave), só quando veio a comunicação social, quando perdi a cabeça ao fim de 2 meses, (odeio exposição mediática), nalgumas horas obtive ementas e nunca mais tive problemas em obter. O lado de bom de ter recorrido à comunicação social, é que agora sabem que se digo, atenção vou contactar a televisão, eles sabem que não é bluff.
7__ A Emilie partilhou recentemente na sua página de Instagram que as pessoas autistas têm uma probabilidade sete vezes maior de tentar suicidarem-se do que pessoas não autistas. Na sua opinião a que se pode atribuir esse facto tão alarmante?
Os Autistas nível 1 de suporte, aquele ” autismo que não se vê, que não parece”, é difícil de provar, não se vê, as pessoas acham-nos perfeitamente funcionais (mas não sabem a que custo), raramente temos direito a acomodações, quase temos vergonha de pedir ajuda porque afinal, se aguentamos até agora, se temos trabalho, família, casa….mas na nossa cabeça a invalidação das nossas dificuldades é algo de difícil de combater. Por exemplo, a maioria das pessoas não sabe, sim, eu dou uma palestra sobre autismo, sozinha, num palco, para um anfiteatro, respondo a perguntas, etc., mas como sou adulta, já tenho mecanismos de proteção, (masking), no entanto há o depois. Após a palestra tento refugiar-me no meu lar, no meu quarto, já não consigo jantar com a minha família nem permanecer à mesa, e fico 2 dias às escuras, com headphones de cancelamento de ruído, cheia de dores musculares como se tivesse febre e chego a ficar sub febril, porquê? Porque entrei em sobrecarga sensorial. As pessoas não sabem o desgaste que temos em relação a um neurotípico em pequenas tarefas, um convívio “obrigatório” por algum motivo, uma ” reunião” familiar, tudo é demais e deixa-nos num cansaço indescritível em que muitas vezes, até pela forma como vemos o mundo e o entendemos, o suicídio é uma tentação enorme. Porque nos sentimos ainda em adultos extremamente diferente dos outros.
8_ Há uma frase que diz que não é um triunfo manter-se saudável numa sociedade doente. Concorda com esta afirmação? Em que aspeto poderíamos melhorar como seres humanos?
Hoje em dia vangloriam- se os cuidadores, guerreiros, as mães de crianças especiais, gaba-se a resiliência de alguém…. Ninguém pediu para ser resiliente. Somos porque não temos alternativa. É doentio. Temos de ter abertura para aprender sobre as deficiências visíveis, não visíveis, não infantilizar a pessoa com deficiência. É um trabalho de comunidade. Daí eu dar a cara também porque penso, se educar hoje 10 pessoas sobre autismo por exemplo, essas pessoas poderão educar mais 10 e assim sucessivamente. Não posso, ninguém pode mudar o mundo, mas podemos mudar, informar e capacitar, quem nos rodeia.
“Usar qualquer deficiência como insulto só demostra o baixo nível da população em geral”
9_ O que sente enquanto pessoa autista e mãe de um filho autista ao ver a condição ser mencionada abertamente em termos pejorativos como ter “uma visão autista da realidade” ou “estar a ter uma perspetiva autista”?
Muito sucintamente é incrível, sendo a língua portuguesa uma língua com um léxico tão variado, ir buscar perturbações, doenças, como insulto. É triste e deveria ser punido. Demostra claramente que nem sabem o que é o autismo porque nas frases que já ouvi, não faz qualquer sentido. Usar qualquer deficiência como insulto só demostra o baixo nível da população em geral, até daqueles a quem se dá voz e visibilidade, como na política por exemplo.
10_ O que gostaria que o público em geral soubesse sobre o autismo e a que aspetos acha que não se dá a devida atenção?
Para mim, deveria ser obrigatório que a cada workshop, palestra, congresso, houvesse um autista presente no painel. Quem melhor do que nós para falar sobre a nossa condição. Embora cada um de nós tenhamos características específicas, temos muita coisa em comum. E continuam a falar de nós, sem nós, e isso é desrespeituoso. Faz sentido falar de acessibilidade para cadeira de rodas, sem convidar alguém em cadeira de rodas no painel? Não! Então porque é diferente no autismo? Deveria haver sempre um paciente convidado em qualquer palestra sobre saúde, independentemente do tema. Porque precisamos de todos, para melhorar a nossa vida. Precisamos no caso do autismo, do psiquiatra, do psicólogo, do psicomotricista, de terapeuta da fala, do terapeuta ocupacional, e do cuidador do autista, do autista. Só assim as coisas podem evoluir.
Paula Cristina Gouveia