Entrevista a Aliny Lamoglia Parte II “A Perturbação do Espectro do Autismo é uma questão biológica, assim como a Síndrome de Down, a diabetes ou outras questões fisiológicas”

 

Depois da primeira parte, apresentamos aqui o resto de entrevista a Aliny Lamoglia, psicóloga do Desenvolvimento e pós-doutorada em Recursos Digitais para a Inclusão no Instituto Politécnico de Leiria.

 

6. Muitas vezes os pais sentem culpa ou vergonha quando se apercebem que há algo de “errado” com os filhos. Ainda é preciso educar a sociedade no sentido de frisar que o autismo é uma perturbação de neurodesenvolvimento inatamente biológica e que eles não têm de sentir culpa alguma?

 

Há algumas abordagens que acreditam (ainda) que a Perturbação do espectro do Autismo é uma questão relacional, isto é, um problema nas primeiras relações afetivas estabelecidas entre o bebê e os cuidadores. Estas teorias têm consequências até os dias de hoje sobre a forma como muitas pessoas veem o Autismo e advém daí esta ‘responsabilização’ das famílias, principalmente das mães.
Sem dúvida alguma, é preciso informar a sociedade sobre a etiologia do Autismo. Ao menos aquilo que já sabemos, que é uma perturbação neurobiológica, que acontece na embriogênese, isto é, quando o bebê está se desenvolvendo no útero materno, e que as causas ainda são desconhecidas na maioria dos casos. Assim como há vários níveis de Autismo, por isto falamos em “espectro”, há também diferentes causas, dentre as quais apenas algumas foram identificadas até agora, nomeadamente aquelas relacionadas com mutações ou acidentes genéticos e que puderam ser descritas no mapa genético. As demais ainda precisam de investigações… tal como já tem acontecido. Por exemplo, a San Diego University tem um estudo, liderado pelo Professor Alisson Muotri (https://igm.ucsd.edu/faculty/alysson-r-muotri), que a partir de células-tronco produz organóides chamados de minicérebros. Em ensaios clínicos, a estes minicérebros são administrados medicamentos e espera-se que seja possível, a partir das respostas desses organóides, pensar em uma terapêutica medicamentosa personalizada para pessoas com Autismo.
É importante que cada vez mais pessoas saibam que a Perturbação do Espectro do Autismo é uma questão biológica, assim como a Síndrome de Down, a diabetes ou outras questões fisiológicas.

 

“Faz parte de uma certa “mitologia” sobre o Autismo a ideia de que essas crianças não fazem vínculos afetivos”

 

7. Olhar nos olhos, sorrir em resposta ao sorriso do outro, seguir o apontar, usar linguagem referencial são comportamentos ditos típicos. Pelo contrário, a criança autista apresenta mais rigidez e repetição de comportamentos e/ou movimentos bem como menos capacidade de estabelecer vínculos. O que fazer para integrar alguém que parece isolado no seu mundo?

Ótima pergunta. Há muitas promessas que envolvem medicações milagrosas, dietas, terapias sem evidências científicas. Mas o Autismo é, por definição, uma perturbação no dispositivo inato para a interação. Assim sendo, para integrar alguém que tem dificuldade de interação é necessário mais e mais interação. O programa de intervenção com o qual eu trabalho (https://option.org/about-us/autism-treatment-center-of-america/) procura sistematizar no ambiente natural da criança as intervenções que todos os adultos envolvidos nos cuidados podem realizar. Utilizando alguns dos exemplos que você trouxe, como promover o contato visual com uma criança que o evita? Criando situações em que, em primeiro lugar, a criança precise olhar para o adulto a fim de que algo aconteça, seja obter um alimento, um brinquedo ou um afago; em segundo lugar, que este momento seja bom e, portanto, reforçador para que ela queira, em uma outra situação, olhar para o adulto novamente. No caso de “seguir o apontar”, diante de alguma necessidade da criança, o adulto fará a ação de apontar sistematicamente, até que a criança crie uma contingência entre o apontar do adulto, a identificação visual daquilo que deseja e, por fim, o alcance do seu objetivo.

No caso dos vínculos afetivos, costumo dizer que faz parte de uma certa “mitologia” sobre o Autismo a ideia de que essas crianças não fazem vínculos afetivos. Isto não é verdade de jeito nenhum! Há idiossincrasias na forma como pessoas com Autismo se relacionam, mas é uma questão de qualidade dos vínculos – sob o olhar de pessoas típicas – e não de ausência dos mesmos. O que, efetivamente, construirá estes vínculos é o que for realizado em parceria. É comum que, ao chegarem ao meu espaço de atendimento, crianças pequenas chorem, queiram ir embora, fiquem agarradas ao cuidador e não interajam comigo. Ao longo de algumas sessões, começam a observar, percebem que o cuidador está à vontade, interagem comigo e tudo começa a fluir… até o momento em que não querem ir embora ao final da sessão.

 

“Penso em uma campanha nacional sobre literacia em desenvolvimento inicial”

 

8. Escreveu que a fala e a marcha são sobrevalorizados como marcos de desenvolvimento. Como sensibilizar os pais para que estejam atentos ao manancial de pistas dadas pelo próprio filho para evitar um diagnóstico tardio de Perturbação de Espetro do Autismo (PEA)?

Penso em uma campanha nacional sobre literacia em desenvolvimento inicial, algo que fosse veiculado pela RTP, SIC, houvesse outdoors espalhados pelas ruas, com a participação do Serviço Nacional de Intervenção Precoce na Infância (SNIPI). As equipes de Saúde Familiar também deveriam estar envolvidas nesse processo. Há alguns dias estive em uma Unidade de Saúde Familiar para capacitar os profissionais em identificação precoce de risco para Autismo e apresentei o ASDetect (asdetect.org). Falamos sobre os marcadores da fala, marcha e alfabetização e o quanto estas habilidades são precedidas de outras, não tão conhecidas e, por isto, pouco valorizadas. Acredito fortemente que se falarmos repetidamente sobre contato visual, sorriso, gestos comunicativos, linguagem referencial será possível influenciar mais e mais pessoas a identificarem perturbações do neurodesenvolvimento logo no início.

 

9. No filme “Meu filho, meu mundo” (no original “Son rise – A miracle of love”) de 1979 há uma dedicação muito grande à criança e a consciência de que pode haver avanços e recuos, mas que devem ser sempre festejadas as pequenas vitórias. O que mais a impactou neste filme que possa recomendar a sua visualização aos pais e comunidade como um todo?

O que mais me impacta ainda neste filme, apesar de ser tão antigo, é a incongruência entre o que a Medicina da época é capaz de dizer sobre o Raum e o que os seus pais são capazes de realizar a partir do pouco conhecimento divulgado sobre o Autismo. Eles conseguem fazer tanto com tão pouco! E descobrem que a conexão com o filho é a “tábua de salvação” que nenhum especialista pôde supor. A partir desta descoberta, começam a elaborar o Son-Rise Program, baseado em quatro princípios fundamentais: contato visual; comunicação não-verbal; comunicação verbal e flexibilização do pensamento. Os objetivos do Programa são descritos e ganham forma a partir de um plano de desenvolvimento de brincadeiras e jogos interativos, que constituem o livro “Brincar para Crescer” de Tali Berman e Abby Rappaport (https://www.inspiradospeloautismo.com.br/wp-content/uploads/2014/01/Preview-Brincar-para-Crescer.pdf).

 

10. Um dos objetivos do Novo Milénio é “Nenhuma criança deixada para trás”. Como capacitar o núcleo familiar, educadores de infância e prestadores de cuidados de saúde para que intervenham logo que suspeitam de um problema de desenvolvimento, como o de Autismo, numa criança?

E primeiro lugar, sou professora, então acredito na Educação como transformadora dos paradigmas que as sociedades sustentam. No caso dos conhecimentos sobre desenvolvimento inicial, acredito que a formação de educadores e de profissionais da saúde deveria incluir em suas unidades curriculares os conhecimentos adquiridos até aqui sobre desenvolvimento inicial, o que se sabe hoje sobre os “primeiros mil dias”, sobre os quais falamos acima. A partir destes profissionais, as ideias da intervenção precoce seriam, paulatinamente, transferidas para cuidadores e não veríamos mais famílias que relatam as condições de suas crianças e ouvem em resposta frases como “cada criança tem seu tempo”, “você está muito ansiosa, mãe” ou “ele nem parece autista, olha como é apegado a você!”.

Em breve pretendo desenvolver um estudo sobre inter-brain synchrony com o objetivo de mostrar que crianças muito pequenas são capazes de se envolver em situações de brincadeira com seus cuidadores e poderemos registrar, com um dispositivo de imagem cerebral, o exato momento em que os dois cérebros sincronizam e a atividade realizada pela criança se transforma em uma aprendizagem.

Um dos objetivos deste estudo será demonstrar que quanto mais cedo essas interações acontecerem, melhor será o prognóstico para a criança com Perturbação do Espectro do Autismo.

 

Paula Cristina Gouveia