Aliny Lamoglia é psicóloga do Desenvolvimento, mestre em Psicologia Clínica e Doutora em Psicologia Social.
Recentemente concluiu o pós-doutoramento em Recursos Digitais para a Inclusão no Instituto Politécnico de Leiria.
Atualmente atende crianças, adolescentes e adultos com Perturbações do Neurodesenvolvimento;
oferece formação para profissionais da Saúde e da Educação em Identificação e Intervenção precoces em
Autismo e é responsável pelo Serviço de Saúde Mental e Bem-estar do Instituto Piaget de Vila Nova de Gaia.
Fomos falar com ela para saber das últimas descobertas acerca da Perturbação do Espectro do Autismo (PEA).
1. A sua tese de pós-doutoramento intitula-se “Biomarcadores de habilidades sociais e de comunicação em bebés – Intervenção precoce como redução de danos” (2024). Quais foram os fatores percursores que impulsionaram a investigação deste tema?
Em primeiro lugar, sou Psicóloga do Desenvolvimento, e foi o fato das crianças chegarem muito tarde ao meu consultório, mesmo quando se tratava de graus severos de Perturbação de Espetro do Autismo (PEA), que me fez começar a questionar por que não chegavam mais cedo, já que os sinais/sintomas já estavam lá e, supostamente, essas crianças foram acompanhadas por pediatra desde o início da vida. Não consegui ter a resposta para esta pergunta até hoje. Outro fator importante foram as descobertas da Neurociência – minha paixão – que afirmam que o cérebro de crianças pequenas, até dois anos de idade, é tão plástico que em nenhuma outra fase da vida será possível modificar estrutura e funcionamento na dimensão em que acontece nos “primeiros mil dias de vida”. Existe até mesmo um projeto, o First Thousand Days que acompanha gestantes e depois os dois primeiros anos da criança para identificar padrões de cuidados, vínculos e aprendizagens e correlacioná-los com os rumos do desenvolvimento. Essas descobertas mostram que quanto mais cedo é possível intervir no desenvolvimento das crianças, melhores são os resultados em termos de Habilidades Sociais, Comunicação. Estas, por sua vez, são as competências que estão comprometidas (em algum grau) nas Perturbações do Espectro do Autismo, área do neurodesenvolvimento a qual me dedico clínica e academicamente desde 2013. Por fim, as evidências de melhora que consigo ver no meu microuniverso – o das crianças com PEA que acompanho – me fazem ter certeza que a Intervenção Precoce subverte a neurobiologia, como costumo dizer.
2. A educação inclusiva está contemplada na UNESCO para que estas crianças tenham acesso a bons cuidados de saúde, educação, nutrição e moradia. Como se justificam as discrepâncias com a realidade?
Você já deve ter ouvido sobre as barreiras à inclusão. Estas barreiras podem ser arquitetônicas, pedagógicas ou atitudinais. As atitudinais são aquelas que dependem das ações das pessoas para acontecerem. São também as mais difíceis de serem controladas ou transformadas. Vou aqui falar apenas de alguns aspectos do cuidado que demandam políticas públicas para acontecer: saúde e educação. Todos que atendem ou cuidam de crianças de até dois anos de idade deveriam conhecer os marcos do desenvolvimento, para em qualquer caso de atraso ou alteração na qualidade da resposta dada pela criança, algum especialista possa ser acionado, medidas sejam tomadas e intervenções sejam possíveis. Ocorre que muitas destas pessoas não parecem levar a sério os momentos do desenvolvimento antes dos dois anos de vida nos quais importantes habilidades devem acontecer. Sabem que andar, falar e aprender a ler e escrever são importantes, mas não parecem saber que antes de andar é preciso apontar; antes de falar é preciso compreender comandos verbais simples e antes de ler e escrever é preciso ser capaz de recontar uma historinha ouvida. Por isto, frases como “cada criança tem seu tempo” ainda têm eco em muitas famílias, professores e profissionais de saúde.
“Cheguei mesmo a pensar se crianças com Deficiência Intelectual não estariam confundidas com crianças com PEA”
3. Segundo dados estatísticos do CDC/EUA (Centro de Controlo e Prevenção de Doenças) 1 em 36 crianças é diagnosticada com a Perturbação de Espetro do Autismo (PEA). Ficou surpresa quando chegou a este número?
Não fiquei surpresa porque venho acompanhando estes números há muito tempo e também porque trabalho com formação de professores e de médicos e ouço o que dizem sobre as incidências de PEA.
Neste último final de semana estive em uma formação com animadores socioculturais, profissionais que trabalham com as crianças nas escolas públicas no prolongamento do horário escolar. O que vi e ouvi foi muito grave! Quase todos os profissionais relatam ter uma ou mais crianças com PEA. Cheguei mesmo a pensar se crianças com Deficiência Intelectual não estariam confundidas com crianças com PEA nestes relatos.
4. A perceção da chamada do nome e a atenção compartilhada (apontar para mostrar algo a alguém) fazem parte do desenvolvimento típico aos 8 meses. Devem ser sinais de alarme quando a criança não os apresente?
Sim, sem dúvida alguma.
“As atividades as quais o cérebro desta criança é exposto definirão as conexões que se tornam robustas”
5. Ouvimos várias vezes que uma criança se deve desenvolver ao seu próprio ritmo, mas no caso do autismo, a intervenção precoce é muito importante, devido à plasticidade cerebral. Podia explicar melhor este conceito e de como nos primeiros mil dias de vida se fazem conexões essenciais ao funcionamento da criança?
Falamos um pouco disto acima. Na verdade, todas as crianças precisam de estímulos de Comunicação e Habilidades Sociais; uma criança com desenvolvimento típico que é negligenciada também terá atraso, um atraso circunstancial, mas nem por isto menos grave. Toda criança deve se desenvolver no seu próprio ritmo dentro de uma margem de ‘tipicidade’. Por exemplo: é típico que uma criança fale as primeiras palavras entre os 9 e os 14 meses. Esta é a ‘margem de segurança’ para ficarmos despreocupados. Antes dos 9 meses é precoce, depois dos 14 meses significa que o contexto interacional desta criança não foi capaz de prover os meios necessários para que ela partilhe o código linguístico com os seus pares. Algo impediu este desenvolvimento, pode ser falta de estímulo, perda de audição, déficit intelectual ou uma perturbação do neurodesenvolvimento e só uma investigação detida será capaz de nos dizer o que ocorreu. Um bebê humano nasce com uma quantidade de neurônios muito superior àquela que um adulto típico possui. Por que isto acontece? Porque as atividades as quais o cérebro desta criança é exposto definirão as conexões que se tornam robustas e, por isto, são mantidas e aquelas que, por falta de uso, não se consolidam no cérebro. É isto que chamamos de ‘podas neuronais” que acontecem em alguns momentos do neurodesenvolvimento.
Paula Cristina Gouveia