Maria Gomes, de 21 anos e tem doença bipolar, anteriormente conhecida por psicose maníaco-depressiva, que se caracteriza por variações acentuadas de humor que oscila entre atividade elevada (hipomania ou mania) e quebra de energia (melancolia ou depressão).
Pode encontrar a Maria no Instagram bipolarmente_falando_ que dá também o nome a um livro que será lançado com o mesmo nome. Esta é uma entrevista muito especial para mim, Paula Cristina Gouveia, porque também sou bipolar, com primeira crise de mania aos 19 anos e diagnóstico aos 21 anos.
Para quem não conhece esta condição, que muitas vezes nos faz magoar justamente as pessoas mais próximas de nós, recomendo vivamente lerem estas linhas.
Estarão as redes sociais a ampliar os efeitos perniciosos das fases mais agudas da doença ou podem ser uma forma de reconhecer sintomas e procurar o tratamento psiquiátrico e psicológico adequado? Para mim e para a Maria foram ambas as opções. Vamos descobrir mais sobre esta jovem extraordinária já a seguir.
1. A Maria diz no seu livro “Bipolarmente falando” que na adolescência se sentia inferior, diferente e esquisita. Numa altura que dizem ser os melhores anos da nossa vida e só nos queremos sentir normais e aceites pelos nossos pares, quais eram os mecanismos que utilizava para lidar com o turbilhão de emoções que a envolvia?
A minha adolescência não foi vivida da melhor forma, devido às recaídas depressivas que me acompanhavam e que, na altura, não compreendia o motivo de as ter. Contudo, desenvolvi alguns mecanismos para lidar com toda a minha confusão mental, sendo um deles, a escrita. Escrever foi, e continua a ser, um grande refúgio para mim. Considero profundamente libertador registar todos os meus pensamentos melancólicos e é também uma forma de alívio e de compreensão. À medida que escrevia, o peso da culpa, da tristeza e do desalento ia diminuindo. Era como se cada palavra escrita esvaziasse um pouco da dor que sentia.
2. Em março de 2023 tem o seu primeiro episódio maníaco. Para quem só conheça superficialmente a doença bipolar, o que pode dizer sobre o seu estado de mania, que culminou no seu diagnóstico com 19 anos de idade?
O meu primeiro episódio de mania ocorreu em 2023, quando tinha apenas 19 anos de idade. Até então, eu só estava familiarizada com as fases depressivas, marcadas por uma melancolia profunda e uma apatia constante, contrariamente ao estado de mania, que foi frenético e muito agitado.
Para quem não tem conhecimento desta doença, o estado maníaco pode parecer, à primeira vista, uma fase de maior energia e desinibição. Porém, é bem mais complexo. No meu caso, sentia-me invencível. Falava de forma acelerada, dormia muito pouco e tinha um grande sentimento de euforia. Os pensamentos atropelavam-se uns aos outros e também possuía uma sensação de grandiosidade. Era como tudo parecesse possível.
Este episodio foi determinante para o meu diagnóstico de transtorno bipolar. A partir desse momento, encontrei uma explicação para as minhas oscilações de humor recorrentes. E, foi sem dúvida, o início de um novo capítulo na minha vida, que me abriu portas ao autoconhecimento, à aceitação e ao tratamento.
3. A dualidade entre depressão e mania continua, sendo que em setembro tem o seu segundo episódio desta última. A hiperatividade, impulsividade, euforia, o stress excessivo, privação de sono e sazonalidade são fatores envolvidos em estados maníacos. Quais sintomas diria que tiveram mais peso na sua recaída?
O meu segundo episódio de mania foi mais intenso que o primeiro e a sua duração foi mais longa. Sem dúvida que o sintoma mais notório foi a falta de noção. A falta de filtro. Perdi a capacidade de distinguir aquilo que era apropriado dizer. As palavras saíam sem travão e, sobretudo, sem coração. Além disso, a privação de sono foi marcante. Ficava acordada até horas tardíssimas, dormindo muito pouco e, no dia seguinte, acordava com uma energia dúbia. Parecia que não tinha fim, era inesgotável.
Ficava horas e horas a falar sozinha ou a importunar amigos e familiares com as minhas conspirações e ideias sem nexo. Surgiam-me diversos pensamentos perniciosos que nunca pensei ter, mas que num episódio se tem. E, não só pensava, como os realizava.
Em suma, foi precisamente a soma destes sintomas que agravaram a intensidade do episódio. No entanto, foi através deste episódio que compreendi que o estado maníaco não é só uma intensificação de energia, mas sim algo que pode ser destrutivo e nocivo. E, também me auxiliou a não desvalorizar os sinais de alerta que precedem um episódio.
4. A culpa e a vergonha são consequências desta doença que deixam as suas marcas. Sente que esta doença tão complexa ainda é incompreendida, o que faz com que amigos que possamos ter afetado se afastem ou desistam de nós?
Sim. Considero que esta doença ainda não é, por muitos, compreendida. Muitas vezes, acreditam que as nossas atitudes ou palavras são realizadas e proferidas com intencionalidade. O que não é. De facto, durante um episódio, não conseguimos controlar aquilo que sai de nós. Está fora do nosso controlo, pois são os sintomas de uma condição mental que se apoderam da nossa mente e do nosso corpo.
Houve pessoas próximas que se afastaram de mim. Não compreenderam a doença e não souberam lidar com a mesma. E, isso fez-me perceber que nem todos terão a capacidade para tal, para entender uma doença tão complexa, e está tudo bem. O importante é valorizar aqueles que ficam, que nos apoiam e que se esforçam para compreender esta condição.
5. No seu livro tem uma imagem mental muito bonita de uma menina a enfrentar algo mais forte que ela. Que práticas usou para desenvolver a auto compaixão necessária para se perdoar pelos danos trazidos pela sua condição?
A imagem de uma menina a lutar com algo mais forte do que ela representava muito daquilo que eu sentia. Sentia que não era capaz de enfrentar algo tão complexo e problemático. Contudo, consegui. Fui capaz. Aos poucos, comecei a perceber que a culpa não era minha e que não fazia sentido viver agarrada à vergonha por aquilo que fiz ou disse que não correspondia ao que eu realmente sentia. Também entendi que as nossas atitudes, num episódio maníaco, não nos definem. Não fazem parte de nós, da nossa essência.
Além disso a psicoterapia teve um papel fundamental neste processo. Foi através dela que aprendi a olhar para mim com mais empatia e com mais compaixão, pois, no fundo, eu era só uma menina a lutar com algo mais forte do que eu.
6. Por vezes, até acertarmos na medicação e dose correta a angústia é enorme e sentimo-nos como cobaias. A vontade de não querer mais alternar de forma tão acentuada entre euforia e depressão motivou-a a continuar rumo à tão sonhada estabilidade?
Sem dúvida. O processo de encontrar a dose adequada para mim foi desafiante. Foi longo e demorado. Foi maçante estar sempre em testes, sem saber se iria resultar ou se teria que começar tudo de novo. Contudo, a ânsia de querer alcançar a estabilidade era maior do que a minha dor. O desejo de poder viver sem os altos e baixos constantes motivou-me a não desistir. E, quando finalmente se alcança a estabilidade percebemos que todo o esforço, persistência e resiliência compensaram.
7. Quais foram os maiores mitos e desinformações que já encontrou sobre doença bipolar?
Um dos maiores mitos que já encontrei sobre esta condição foi a ideia de que se trata apenas de mudanças repentinas de humor. Como dizem, ora se está feliz, ora se está triste. Mas a realidade é bem mais dura do que essa. As fases maníacas e depressivas têm uma duração, um impacto e uma intensidade maior do que uma simples oscilação de humor. Outro mito bastante comum é que as pessoas que são portadoras desta doença não conseguem ter uma vida normal. E, a verdade é que, com o tratamento adequado, é perfeitamente possível ter uma vida equilibrada.
8. A vida pode ser muito dura e pesada quando se lida com uma doença mental. Aos 21 anos, já encontrou a leveza de borboleta que procurava?
Sim. Hoje afirmo que vivo com mais leveza, com mais alívio e sobretudo, com mais estabilidade. Sei que ainda tenho muito para descobrir da vida, desvendar novas facetas da minha pessoa, novas fases para experienciar, novas pessoas para conhecer, novos lugares para visitar e é isto que me dá motivação para continuar. Continuar a estar aqui. Continuar a viver, sem medos e sem o peso da culpa.
9. A Maria tem uma frase que remete à coragem de enfrentar uma doença bastante complexa, de aguentar e lutar. A terapia ajudou-a nesse sentido, a ver os pontinhos de luz que se escondem em qualquer escuridão?
Sem dúvida. A terapia foi uma ferramenta crucial no meu processo de recuperação. Com ela, aprendi a valorizar cada pequena conquista e a olhar para a minha pessoa com mais ternura e com mais compaixão. De facto, auxilia-me a ver a vida de uma forma mais leve e mais bonita. E, fornece-me diversas estratégias para lidar melhor com o que vou sentindo. Foi e é indispensável para mim.
10. Noutra parte do livro a Maria diz que tem uma doença mental que pode não ter cura, mas é uma doença que se trata. É preciso passar mais mensagens de força, resiliência e esperança no campo da saúde mental?
Acredito que é essencial espalhar mensagens de força, resiliência e esperança no campo da saúde mental. Quando se recebe um diagnóstico de uma doença que não tem cura, é propício pensar que é o fim do mundo e que a vida será para sempre limitada por essa condição. Mas a verdade é que não é. De facto, com o tratamento adequado, é perfeitamente possível viver com qualidade.
Sinto que as narrativas em volta das doenças mentais ainda estão muito associadas à dor e ao sofrimento e, embora isso faça parte da realidade, é importante mostrar que também existe superação. A vida não termina com um diagnóstico, pelo contrário, renasce com mais autocuidado, estabilidade e consciência.
Paula Cristina Gouveia