Hoje, nenhum pombo. Seria de supor alguma melhoria higiênica na estação. Mas a sujidade é tão gigantesca que um microscópio só mostraria o que já é visível a olho nu. Sujidade sem nome, vinda de outras paragens, grudada nos assentos malhados, e que esparramada, faz imagem de mapas desconhecidos agora estampados no chão. Invocar o cheiro, não me atrevo, as palavras merecem o mínimo de respeito. Quem sujou o mundo? Ora, sei que uma mera estação não é o mundo, mas o mundo por grande que seja, é uma abstracção que se concede sê-lo, na prática, no pequeno canto onde estamos. A metáfora do amor que um dia nos medrou a boca, ardente, encontra seu equivalente real nas beatas. Milhões de beatas. Dou uns passos, ali, e bem ali em cima dos carris uma nota de 20 euros, rasgada, só pela metade, a mostrar o perigo do materialismo tão no caminho certo do abalroamento existencial. Quem sujou este meu mundo? Depois, as pessoas. Como um desfile de moda de sujos, fazem questão de combinar com as tendências locais de sujidade. Não basta a imundície física, chafurdam o cérebro na lama dos telemóveis e sorriem agraciados por alguma bênção nauseabunda. Parecem trazer nas mãos bolas de cristal que apesar de sobrecarregadas de imagens são tão vazias quanto as verdadeiras. Com a diferença de que as esferas de cristal de antigamente sempre serviam para estimular a imaginação. Felizmente que tenho algum dote de escrevente e limpo as feridas deste leproso tédio com qualquer borrão. Por isso, vo-lo digo, a verdade, literatura, quando é sincera, emerge como golfada profunda dos intestinos da alma.
De repente, recordações da tempestade. A razão em desespero salvar o barco tenta. Ondas gigantes vão e voltam, fustigam a embarcação, e batem, batem e batem no mar vivo do coração. E só depois a razão avista a ilha, virgem, pura. Limpa.
Quando penso nada mais haver para escrever ou observar, algo reaviva o meu interesse e ponho-me à escuta. A meu lado uma senhora fala ao telemóvel. Reconheço a voz. Percebe-se facilmente que é o mesmo timbre que se ouve das colunas de som da estação. O que tem muita graça e surpresa. Não é sempre que se encontra o rosto da divindade humana que nos guia todos os dias. Vai conversando ao telemóvel e nota-se que está com pressa, o jantar ainda não está pronto, o marido não se quer divorciar, o amanhã é já eminente. Está atrasada. Do outro lado da linha o filho espera-a impaciente no portão da escola. Não saias daí – diz-lhe – a mãe não sabe o horário do comboio. Imagino que o filho esteja questionando como é que a mãe não sabe quando é que vem o transporte, logo ela, porque mesmo a seguir a senhora repetiu aos berros A mãe não sabe o horário do comboio, pronto!! antes de desligar. Recomeça a falar sozinha mas agora para toda a estação. A sua voz salta do alto-falante e diz-lhe o horário. Deve ser, assim, nesse estridente e alto volume que nos ouvimos quando pensamos em coisas de que não gostamos. O comboio ainda vai demorar a chegar. A dona da voz dos horários, ao que parece, quer acima de tudo, não se ouvir e, por isso, coloca os auriculares. Mas a bateria do telemóvel acabou. É obrigada a continuar a ouvir-se como se naquela estação estivesse dentro da consciência. Não podia calar a própria voz. Não lhe interessavam outros comboios, outros horários, outros maquinistas, outros passageiros, outras vidas. Estando todos na mesma estação não nos interessa mais ninguém. Olhamos os outros convictos de que apenas nós existimos. A esperança de que haverá nalguma carruagem um lugar reservado com o nosso nome. Mas um lugar reservado devia existir, na estação, para este senhor que já deve ter trabalhado tantas décadas que o próximo comboio devia transportá-lo para as terras da reforma. Olha para o relógio e não vê as horas, antes, vê os comboios que na vida passaram, os amigos que já partiram, os comboios que nunca apanhou, as oportunidades que perdeu, a Rosa era uma mulher bonita, ainda é, mas nunca mais enviuva. Ou seja, será que ele ainda espera esse comboio? O seu ar solitário é o de alguém que uma vez se suicidou de verdade na linha férrea e foi trazido de volta à esta morte em que vive. Tem tão pouca esperança de renascer que já perdeu o desejo de se matar novamente. É ir morrendo. Parece que o tempo lhe deu este relógio para gozar com ele. Deu-lhe estas pessoas para troçar dele. Nunca ninguém tem tempo para estar consigo. E quando lhe vêm a memória percebe que essas pessoas têm de ir a correr para as memórias de outras pessoas, e portanto, não têm tempo para estar com ele agora. Nessa espera do comboio, escapa-lhe o nome do tipo que uma vez o desafiou para um jogo de bilhar, chamava-se . O relógio que traz ao pulso tem mais vagões de acontecimentos que todos os comboios da Índia enfileirados. Foi o presente do antigo patrão que tinha um restaurante de comida , ou era italiana? Não, foi outro patrão quem lhe deu este relógio, no aniversário, ou foi porque não tinha dinheiro para lhe pagar as horas extras. Mentira, foi o que lhe deu o relógio por causa de uma aposta que fizeram em dezembro de . As suas memórias aparecem-lhe como os horários suprimidos num dia de greve.
Estamos a espera do comboio, sim. Mas, estamos a espera do quê? Falta-nos coisa. Para espanto de todos, até mesmo da senhora que dá voz às chegadas e partidas, o comboio foi cancelado e isto anunciado com a voz da mesma. Aí está uma prova de que aquilo que dizemos pode virar-se contra nós pois ficou muito aborrecida. Com isto, todos se espalham como se tivéssemos estado num mundo escuro que se acendeu. Agora, partilhamos uma chatice comum, táxis comuns, ubers são divididos. Alguns não sabem muito bem como ir sem comboio, mas pela falta de alternativa, procuram nas manchas de sujidade no chão uma revelação de mapa, algum caminho. Enchem-se ainda mais de tédio. Pontapeiam pombos imaginários, os pombos distraem, é por isso que os enxotamos. O mendigo que há pouco passou mas nada recolheu, tem por ora mais sorte, sabe que o ser-humano precisa de tempo e paciência para prestar atenção às vidas que o rodeiam. Quanto a mim, salto para os caminhos de ferro. Não estou sozinho. Vamos a marchar – um grupo de gente. Não, não. Não nos conformamos. Queremos chegar a algum lado. Quanto mais caminhamos percebemos que somos o comboio por que esperámos. Afinal, estávamos à espera de uma decisão própria. Não sendo tão velozes temos tempo para cantar juntos, os hinos do progresso, ao fresco, ladeados por murais de grafitis que os olhos de dentro do comboio não podem ver. Mas, a certa rasura, separo-me do grupo e corto por um matagal. O terreno eleva-se e de lá de cima avisto a cidade e a estação. O comboio chegou. Mas não havia ninguém para o receber. Todos tinham partido. O maquinista salta para a plataforma e fica ele à espera do comboio. Aquele que realmente importa. O comboio das pessoas.